Madame Durocher: as ideias de uma parteira sobre a independência do Brasil

Aline Machado dos Santos1

A representatividade feminina nas decisões políticas do Brasil é uma conquista que vem sendo gradualmente ampliada por meio de muitas lutas. Fato recente quando, há 93 anos, as potiguares recebiam, pela Lei Estadual nº 660, o direito de serem eleitoras e eleitas. E, em 1977, era determinada a reserva de 30% do pleito nos partidos políticos para as mulheres. Somente em 2011, a presidência do Brasil é ocupada pela primeira vez por uma mulher. Dilma Rousseff foi a 36º pessoa a ocupar o cargo de presidente da república. 

Temos hoje diversos nomes que ecoam quando falamos de representatividade feminina nas decisões políticas como, por exemplo, a vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco. A militante das causas sociais, LGBTQI+ e feministas foi assassinada em 2018, com o caso ainda em investigação. Mas, muito antes de alcançarmos o recorde de candidatas nas eleições de 2020 e a taxa de mais de 12% de mulheres eleitas, segundo o Tribunal de Justiça Eleitoral, elas já refletiam sobre os rumos da nação e criavam estratégias para que suas concepções alcançassem o âmbito político.

Nas proximidades do cinquentenário da independência nacional, muito se debateu sobre a efeméride, seus personagens e memórias, a imprensa, os políticos e os intelectuais. Entre os personagens, figurou também uma mulher. Maria Josephina Mathilde Durocher, ou como costumava se apresentar, Madame Durocher “Parteira pela faculdade de medicina do Rio de Janeiro, parteira da casa imperial, ex-parteira de Sua Alteza e finada princesa D. Leopoldina, duquesa de Saxe Coburgo e Gotha, e membro honorário da academia imperial de medicina do Rio de Janeiro.”¹ Ela apresentou suas concepções a respeito da  emancipação da política e do seu povo em 1871, com a publicação do livro Ideias por coordenar a respeito da emancipação, dedicado ao Barão de Cotegipe como amigo e destinado à Assembleia (a fim de que suas reflexões fossem ouvidas).

A francesa naturalizada brasileira abandonou a profissão de modista e florista, herdada da mãe, e resolveu iniciar seus estudos com aulas particulares sobre parto com um médico e, posteriormente, no curso na Academia Imperial de Medicina em 1832, tendo sido a primeira mulher a se matricular e também a primeira diplomada no Brasil. Se transformou numa parteira de grande prestígio na Corte, primeira mulher a ser membro da Academia Imperial de Medicina e a assinar textos médicos com seu próprio nome. Pioneirismo que trouxe inúmeras críticas e talvez influenciou o seu modo de vestir. Casaco masculino, gravata, colarinho e cartola acompanhavam a saia. Por detrás da justificativa de comodidade, moral, respeito e decência que o vestuário transmitia, estava uma sociedade onde a figura feminina não combinava com uma mãe, solteira, que ocupava uma profissão da área médica e refletia soluções para o avanço do seu próprio país.

No livro, a parteira sustentava a tese de que um país independente não cabia sustentar a escravidão. A fim de sanar a disparidade propunha um projeto de emancipação gradual dos escravos dividido em 4 passos: adoção de um código onde o escravo aprendesse seus direitos e deveres e o senhor o limite de sua autoridade, criação de um imposto destinado emancipar um ou mais escravos em toda comemoração da independência, formulação de uma tabela que fixava o preço do escravo, tendo a idade por critério, e um decreto que tornasse livre todo escravo nascido no Brasil, a partir de sua publicação.

O interessante de notar no escrito de Durocher é a semelhança de suas sugestões com o decreto lei nº 2040, a conhecida Lei do Ventre Livre. Mesmo não sendo possível saber o mês exato no qual o livro de Madame Durocher foi publicado e nem mesmo se suas sugestões foram de alguma forma incorporadas pelos legisladores, a lei promulgada naquele 28 de setembro de 1871, mesmo ano de publicação do seu livro. 

Madame Durocher se esforçou na tarefa de pensar a história do Brasil a partir de sua condição de nação independente, elaborando estratégias narrativas para dar a ver determinadas perspectivas de progresso, política, civilidade, verdade, educação e liberdade. Escrita que faz estranhar rever, criticar, indicar limites e atrasos que marcariam o país em sua condição de emancipado justamente no período em que se comemorava 50 anos do feito.

A parteira, hoje reconhecida na história da medicina brasileira, defendia a tese que a verdadeira independência de um país ocorre quando há a emancipação do seu povo. Quando estamos prestes a comemorar o bicentenário da independência do Brasil, Durocher auxilia a pensar até que ponto somos verdadeiramente independentes numa nação onde direitos básicos ainda são negados a uma grande parcela da população. 

1Mestre em Educação, Integrante do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NEPHE/UERJ) e Professora do Colégio Pedro II.


Imagem de destaque: ANM

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