Livro de criança não precisa dar sermão

Maria G. Lara

Dia desses, passando por um sebo pela primeira vez em mais tempo do que gostaria de admitir, me deparei com uma capa familiar. A porta flutuante transparente num espaço multicolorido como ilustração central na capa verde-água esteve na cabeceira da minha cama por uns bons anos quando eu era criança – curiosamente, aquela edição também veio de um sebo.

“Mariana estava fora de si”. As primeiras palavras de A Porta Mágica me agarraram quando eu tinha uns oito anos. O prefácio do autor, Haroldo Maranhão, me ensinou naquelas palavras um conceito cujo nome eu só entenderia muitos anos mais tarde: a autorreferência. Mariana estava fora de si, mas quem estava fora de si muito antes de Mariana era ele, o autor, indignado com a abordagem que a escola de seu filho fazia da literatura, mais o afastando que aproximando dos livros. Com oito anos eu descobri que a arte é, muitas vezes, autorreferencial, mesmo não tendo ideia de que era esse palavrão aí, autorreferencial – e também descobri que um livro infantil sobre um bando de crianças, de amigos de bairro, também podia ter essa dimensão.

Por essas e outras, A Porta Mágica foi meu livro preferido por muito tempo, até eu descobrir aqueles que o substituiriam: As Aventuras de Alice e O Hobbit. Não é preciso muita explicação quando se fala desses dois, ele são, possivelmente, os livros infantis mais levados a sério por adultos no mundo. A Porta Mágica de Haroldo Maranhão, um brasileiro indignado com as “densas coortes” da aula de literatura de seu filho, não recebe a mesma celebração e reverência – mas eu estou aqui para corrigir essa situação.

O livro fininho da capa verde-água me ensinou bem cedo algo que me fez apreciar muito mais outros livros, mais célebres, quando pude lê-los: eu, do alto dos meus oito anos de idade, também merecia ser levada a sério. Não que eu desprezasse os poemas bem lúdicos e as histórias cheias de rimas e figuras que lia na escola, mas tinha algo de especial na forma como Maranhão me tratava como leitora d’A Porta Mágica.

Suas personagens eram um bando de crianças que podiam ser invejosas, reclamonas, preguiçosas, briguentas ou esquisitas sem que o autor enfiasse uma lição de moral no fim. Pela primeira vez, eu vi personagens escritas para crianças que não pareciam só mais uma grande alegoria dos meus pais dizendo “não pode beliscar o coleguinha, respeite os mais velhos, seja boazinha”. Mariana era autoritária e tinha tendências meio violentas, Fanfa era meio mosca-morta e mentirosa, Brunehilde era metida, Tripa-de-Boi estava sempre pisando em ovos pra não desagradar ninguém, os gêmeos Nagib viviam se divertindo às custas dos outros. ‘Tava errado? ‘Tava certo? Maranhão não me dizia quem tinha que decidir era eu. Imagine só, confiar numa criança de oito anos para decidir se uma protagonista mandona e meio bruta era boa influência!

A porta mágica do título e o que Mariana escondia por trás dela eram uma parte muito pequena do que me levou a reler o livro dezenas de vezes ao longo dos anos. Eu gostava era das palavras difíceis que eu tive que procurar no dicionário na primeira vez, das gírias que eu não conhecia – o livro é de 1983, sobre uma infância quase uma geração todinha antes da minha -, dos Cavaleiros da Meia-Noite que era como chamavam o clubinho onde os personagens contavam histórias estranhas, de como o livro já começava com Mariana chamando Brunehilde de imbecil e ameaçando ela de murro na cara. Não me levem a mal, eu era uma criança comportada e tudo – e sempre fui baixinha demais pra ser briguenta – mas era bom ler sobre crianças fazendo todas as coisas erradas que crianças fazem sem sentir que Haroldo estava me dando um sermão através delas.

O fato é que A Porta Mágica me soava sincero, um livro pra criança que não se diminuía por ser pra criança. Ao me levar a sério e confiar que eu saberia ler seu livro sem me desesperar, Haroldo Maranhão construiu uma história tão simples mas, ao mesmo tempo, tão distante do que eu estava acostumada que me marcou pra uma vida toda. Depois daquela passada no sebo, dei um jeito de trazer de volta minha edição da casa da minha mãe.

Firme e forte, o livrinho segue todo remendado com fita crepe. Ter ele pertinho é bom: esse pedacinho de infância na prateleira equilibra todo o resto. Ao levar a sério tudo de mais simples e traquina da infância, A Porta Mágica me deixa rir de todos os livros adultos em torno dele – tão pomposos com suas muitas páginas, sem ter a menor ideia que o grande marco da minha leitura foi esse livrinho verde-água.

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