Formação de professores: entre o delírio e o tribunal (Notas de um estudante em formação) – João Victor Oliveira

Formação de professores: entre o delírio e o tribunal
(Notas de um estudante em formação)

João Victor da Fonseca Oliveira

Sé é verdade que a identidade sofre crise, a crise ainda que almeje uma identidade não logra. Sua tutela é múltipla, sob sua conduta se dispõe inúmeros desconsensos, sua certeza é a itinerância de sentidos e significados que lhe são atribuídos.

Convido, neste momento, a crise para um diálogo com a evidência que lhe forja: a formação de professores. Torno-a [a formação] réu dos meus questionamentos. Muito embora, esteja longe de alcançar sentenças peremptórias, acuso: A formação delira! (Os nossos colegas psicanalistas em seus exaustivos estudos sobre a relação desse campo de pensamento com Educação que disputem inconformismos). Mas sobre esse convite, posto o tribunal, desalinho:

“Para que o convite produza algum efeito de pensamento, é preciso que o encontro ache seu ponto de desentendimento. Por desentendimento entenderemos um tipo determinado de situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura.” (RANCIÈRE, 1996)

Na sala da tribuna, por entre interrogações, me vejo na condição de licenciando do curso de História e aprendiz no ofício da pesquisa em História da Educação sobre a “formação” que temos na Universidade, no tempo presente, à vista do que temos (nós professores) de enfrentar (sim, o termo é usual) em sala de aula. A acusação da qual me valho se engendrou quando me fiz participante do debate profundamente instigante promovido pela Faculdade de Educação no início deste semestre, em cuja ocasião se debateu possíveis (des)caminhos da formação de professores na UFMG. A “Semana ser professor” significou um importante marco dos processos de reformas que tendem a se desenrolar até o cumprimento dos prazos da resolução nº 2 de 1 de julho de 2015 (MEC-CNE) que prevê o aumento da carga horária para os cursos de licenciatura e dá outras providências, o que aponta para uma oportunidade (que poderá ou não ser aproveitada) de pensar (repensar) a querela que há muito acompanha os debates na Educação no que tange à formação de professores: “Como formar os professores?”.

Recente inquietação – embora não nova – me acometeu ao participar da 2ª conferência do ano promovida pelo projeto “Pensar Educação, Pensar o Brasil”, ocorrida no dia 28 de abril de 2016. Ela contou com a presença e importantes contribuições de uma equipe de professores da rede municipal e da Universidade Federal, ambos da cidade de Ouro Preto e região. Na oportunidade descrita, um dado me provocou ao ser anunciado. Em linhas gerais, os resultados obtidos a partir da aplicação de um questionário pelo grupo de pesquisa apontam que 60% dos professores da educação básica pesquisados afirmaram possuir frequência em programas de formação continuada, 37% afirmaram participar esporadicamente. No total investigado 44% afirmaram possuir pós-graduação. Todavia, a massiva maioria dos participantes afirmou (e reclamou!) continuar despreparada para exercer sua prática docente (nem sempre doce). Ocorreu-me pensar nos desvios e nos (des)entendimentos: o delírio da compreensão de “formação”. De que despreparos estariam falando? Seriam novos conceitos e velhos anacronismos?

Instaurado o inquérito, prossigamos…

Em minhas noites e tardes nos bancos da Universidade, investidas e intrépidas a visitar a cela imponente (minha sala de aula), encerrada com cadeados de códigos complexos que resguarda o réu, observo enquanto continuo a mirar atentamente este famigerado delírio, por meio do qual me iniciam no domínio do conteúdo e nas técnicas de ensino. Noto a constante tendência de considerar o fazer docente distanciado do lugar que ele ocupa: o ambiente da sala de aula.

Os sentidos da formação (nem sempre sentidos) me fazem refletir sobre a prática palidocente, amargocente, dolorosoente, desafiadorocente, é dizer também Docente! Como se estudássemos os instrumentos, tomássemos conta de nossa parte na linha de produção, mas perdêssemos noção do todo do nosso produto. Com os pés no chão da fábrica, não sabemos de que acabamento ela se reveste, de que janelas ela se orna, de que estruturas metálicas se arma, de que ventos se preenche, de que sujeitos se lida, de que realidade se ocupa. De alguma maneira (e felizmente nem sempre, e nem em todas as disciplinas) perdemos (se é que um dia o tivemos) não o domínio ou o controle (dessa prepotência e presunção já fomos emancipados, ou queiramos ser), mas a consciência acerca do chão que pisamos, e de quem pisa nele conosco (nossos estudantes: complexos, mistos, diversos e quanto mais possa haver de sugestões!). Enfim, nosso ambiente de trabalho: que por entre amor e ódio se desenha, ou se rabisca, disputando o terror e a plenitude de muitos professores – talvez, a máxima sentença! – a Sala de Aula.

…de aula e de tantas / outras / coisas, e dessas tantas / outras / coisas, por vezes, nos esquecemos, mas elas nunca se esquecem de nos provocar, de reclamar novas posturas, novas práticas, e que se brade: novas sensibilidades!

Afinal, de que formação tanto se fala? De uma que se necessita ou de uma que se idealiza? Se a pesquisa e a docência não deveriam pressupor dicotomias, a formação do pesquisador e do professor (ou do professor-pesquisador) se confronta diacrônica e sincronicamente. Arriscam certa convivência, nem sempre pacífica. Ora, o réu se encontra desta vez não em um suposto delírio, mas em uma crise… e de identidade. Seria necessária uma formação única, indissociável do ensino e da pesquisa, que pense os dois eixos, ou formações em que sejam consideradas desproporções e diferenças (entre licenciados e um bacharéis) e, por que não dizer, desigualdades? (Bom não entrarei no mérito da questão, perspectivas são perspectivas, campo é campo, Bourdieu que o diga!)

Declaro: o réu não é culpado, ele delira! Está absolvido provisoriamente, merece outro tratamento, talvez por crise de identidade, por abandono de incapaz? Ou de um psicanalista?! A qualquer modo: Inimputabilidade!

Encerrada a sessão, e muito mais havendo a tratar, delibero: Temas de maior contemporaneidade como que educador formar, com que finalidade e para qual sociedade Maria Zenaide Alves e Inês Assunção Castro Teixeira, referenciando o Prof. Oder José dos Santos, nos ajudam a pensar, por meio de sentenças fundamentais quando o réu, agora absolvido, se vê terminantemente interrogado (e que assim o seja perenemente) ao afirmarem que devemos exercitar as práticas e relações sociais democráticas, igualitárias, emancipatórias, coletivas nos tempos e territórios de formação de educadores, para que formados nesta pedagogia eles possam reinventá-la, recriá-la e escandi-la nos mais diferentes tempos e espaços da escola e da vida social em seu conjunto.

Por entre meus calos de todos os dias, lampejos e cascalhos que vou forjando por essa “formação” meus próprios códigos civis e penais, pautando parágrafos únicos e diversos: formação é palavra em ação, palavra em forma, em potencial e inacabada: caleidoscópica), por fim, e não finalmente, vos dedico essa poesia (meu-pão-de-cada-dia):

A palavra não sabe o que diz. A palavra delira, a palavra diz qualquer coisa. A verdade é que a palavra, ela mesma, em si própria, não diz nada Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala e quem ouve Quando existe acordo, existe comunicação Mas quando esse acordo se quebra Ninguém diz mais nada Mesmo usando as mesmas palavras A palavra é uma roupa que a gente veste […] A maioria não sabe o que veste Alguns sabem, mas fingem que não E tem quem nunca usa roupa certa pra ocasião Tem os que se ajeitam bem com poucas peças Outros se enrolam num vocabulário de muitas[…]
(Viviane Mosé)

A formação de professores, afinal, como se veste? Como deveria se vestir? De que deveria se despir? Com sua licença, queira o desentendimento rancièriano nos inquietar, e que permaneça a esperança deleuziana: emerjam possibilidades criativas!

+ Outono de crises políticas (e morais) Belo Horizonte, abril de 2016.

Referências:
Rancière, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. (trad. de Ângela Leite Lopes). São Paulo : Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)

Universidade Federal de Ouro Preto. Programa de Pós-Graduação em Educação. Cadernos do Observatório Educacional da Região dos Inconfidentes. Mariana: UFOP, 2016.

ALVES, Maria Zenaide; TEIXEIRA, Inês Assunção Castro. Travessias e traçados: a formação de professores na UFMG. Disponível em: < http://www.fae.ufmg.br/portalmineiro/conteudo/externos/2cpehemg/arq-ind-nome/eixo3/eixo3.htm>. Acesso em 29 de Abr 2016.

 

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