Formação profissional além das salas de aula e os casos de machismo, racismo, violência sexual no meio universitário – exclusivo

Ana Luiza Jesus da Costa

Inicio esta breve reflexão alertando às leitoras e leitores que não falo a partir do lugar de uma pesquisadora ligada aos estudos de gênero, campo bastante prolífico nas ciências humanas e sociais há algumas décadas. Me coloco a partir de minha indignação como educadora, mulher, trabalhadora, enfim, humana.

Nas últimas semanas, vieram à tona pela imprensa, nas redes sociais, como pauta de audiência pública e de comissão de inquérito, casos de abuso sexual ocorridos na Faculdade de Medicina da USP.

O fato de não ser a FMUSP a única instituição a conviver com essa realidade não reduz a gravidade e a sua responsabilidade para com os casos. Entretanto, segundo os coordenadores do Programa USP Diversidade, “são preocupantes as tentativas de omissão e ocultamento dos casos pelos dirigentes da instituição em nome da “honra” e da “tradição” da Faculdade de Medicina”.

No mesmo sentido, nas mesmas últimas semanas, aparecem mais denúncias nefastas, agora contra o hino da bateria da Atlética da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. A letra é constrangedoramente irreproduzível. As manifestações de indignação contra a música “misógina e racista” feita em redes sociais ganharam destaque no portal G1 da Globo. Sintomaticamente os membros da tal Atlética se esquivaram das acusações atribuindo o hino às gerações anteriores, quando o racismo teria sido “corriqueiro”, e usaram o clássico álibi: “somos contra o racismo, nosso mestre de bateria é negro”.

Perguntas ingênuas(?): De onde vem tamanho ódio que esses meninos (os estudantes praticantes dos citados atos de violência física e simbólica) carregam? De onde tiraram a ideia de que podem dispor do corpo e “da alma” das mulheres e que, não satisfeitos, podem violentá-las física e psicologicamente? Resquícios de uma formação social e cultural patriarcal/escravocrata? Não é mera coincidência que estes fatos tenham se dado na Faculdade de Medicina e não em cursos como de Serviço Social, ou de Pedagogia (não que seja impossível de acontecer em outras unidades, mas sem o mesmo corte estrutural, algo entranhado). Não é mera coincidência, pois os cortes de classe social e étnico-racial da Faculdade em questão ajudam a compreender, tanto os atos de violência, quanto o “silêncio sorridente”, ou no mínimo, a condescendência irresponsável dos dirigentes da Faculdade e, em última instância, da própria Universidade.

A reputação da Faculdade, respeitada, reconhecida nacional e internacionalmente tem sido um dos motivos para o silenciamento. Trata-se de um “templo de luz”, reduto de autoridades científicas galgado “a custa de muito mérito” dos que ali estão ou por ali passaram. Longe de mim, questionar o mérito e a excelência acadêmica da FMUSP, mas enganam-se aqueles que pensam que a formação técnica de seus profissionais não poderia ser tocada por tais questões de ordem ética. É preciso lembrar que a formação de qualquer estudante se dá em todos os espaços de convivência acadêmica, não só em salas de aula e laboratórios.

Um dos comentários unânimes entre pessoas com quem já conversei sobre os casos em pauta, especialmente mulheres, foi “o medo dos médicos que estão sendo formados para nos atender”. Uma das primeiras possíveis consequências que me veio em mente ao pensar em escrever essa reflexão foi a chamada “violência obstetrícia”. Rápida e superficial busca na internet sobre o tema, milhares de resultados. Segundo a matéria do jornal de Londrina, Gazeta do Povo, de 27 de setembro de 2014, uma em cada quatro mulheres sofre de violência obstétrica no Brasil. “O médico entrou e falou ‘Vamos fazer esse bebê nascer’. Mandaram eu fazer força, mas não conseguia por causa do quadro de pressão alta. O médico disse que eu seria a primeira mulher do mundo que não ia conseguir parir um filho. Uma enfermeira debochou, disse que ‘na hora de fazer foi bom’. Comecei a pedir desculpas, me sentia culpada. ‘Seu bebê vai morrer’, o médico dizia. Três enfermeiras empurraram minha barriga, e ele nasceu em silêncio”. O relato é de Luana Lopes, mãe de Max Emanuel, hoje com 2 anos, mas não se trata de um caso isolado. De acordo com uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres é vítima de violência obstétrica durante o parto no Brasil. Em São Paulo, por causa do grande número de denúncias, o Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil público para apurar os casos”. Não é preciso ser formado em sociologia para intuir que entre as mulheres mais vulneráveis a este tipo de violência estão as mulheres pobres e negras.

As iniciativas de apuração dos casos nos dão algum alento. Em uma avaliação, talvez impaciente, considero que a resposta da comunidade universitária aos casos da FMUSP tem sido tímida. A proibição de álcool nas festas da Faculdade não chega a ser uma medida que vá à raiz do problema. Já passou do tempo de se pensar programas educativos que busquem a compreensão dos principais problemas brasileiros para além dos “cursos de humanas”. Sim, os jovens brancos, de elite, “bem formados” precisam passar por um processo de reeducação – e que não seja só teórica, mas que comporte um convívio mais ou menos longo, uma imersão no cotidiano daqueles sujeitos que eles tanto desprezam.

Em algumas instituições, como a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, os casos de violência contra a mulher ensejaram a constituição de um comitê de autodefesa das mulheres. Trata-se de uma medida que possibilita respostas imediatas para o problema. Mudanças mais profundas só serão possíveis com o efetivo processo de democratização universitária, inclusive de cursos como o de medicina. Quando mais negras e negros tiverem acesso aos cursos, quando o perfil socioeconômico for alterado, quando o processo de tomada de decisões for descentralizado e as hierarquias estabelecidas forem quebradas, ainda não estará garantida a igualdade racial e de gênero, mesmo porque a universidade e outras instituições de ensino estão imersas em sociedades também racistas, machistas e desiguais. Mas, neste momento, teremos dado mais passos em direção a almejada igualdade e esta poderá ser tornada princípio formativo dos profissionais que legaremos à sociedade.

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