Exploração ou Condenação: o papel da dívida em Maria Altinha, de Manuela da Fonseca

Rafael Gonzaga Muller

O presente trabalho analisa a temática do mito da exploração econômica como possibilidade de redenção e felicidade para os personagens em Maria Altinha, de Manuela da Fonseca.

Em linhas breve, o conto narra a história de um grupo de mulheres que “vivem lá para o sul, ao pé do mar, atravessam as serras e espalham-se pela planície, para a monda e para o trabalho dos arrozais” (FONSECA, 1984, p.109). Iam-se cantando e assim trabalhavam, sob a promessa de acumular rendas o suficiente para enfrentar a fome e o frio nos tempos da entressafra. Com Maria Altinha, protagonista, não seria diferente: “Logo que chegasse a casa, a mãe abraça-la-ia chorando, e ela, com um sorriso rasgado, havia de mostrar o seu saquinho de chita cheiinho de dinheiro” (FONSECA, 1984, p.110).

Ocorre que, no desenrolar da temática, Maria Altinha vê-se adoentada e perseguida por Valdanim, situações materiais que frustram a sua colheita e a possibilidade de prosperidade, que era controladas à risca no papel do capataz, que registrada cada dia de não-trabalho de Maria Altinha.

Parece central, portanto, a temática da exploração econômica do sujeito, notadamente aquele subalterno, no conto. As subalternidades avolumam-se em Maria Altinha, que além de explorada economicamente, era mulher e viu-se adoentada. Tratar de direitos trabalhistas é completamente absurdo para o enredo em que o conto se dá, uma vez que a atmosfera é outra. Apesar disso, o conto nos brinda com a possibilidade mais real e factível de um mundo sem direitos, de um mundo em que todos são explorados e, nos dizeres dos textos “Pareciam condenados” (FONSECA, 1984, p.111).

Nesse ponto, cabe uma reflexão interessante sobre a estrutura de dominação que paira sobre os homens do ponto de vista linguístico e da exatidão com qual o texto escolhe as palavras para trabalhar. A exploração não é por ela mesma, posto que o conto – em sua sensibilidade – torna-se capaz de escancará-la sob suas diversas facetas e estimularia, nesse percurso, a insurreição dos povos subjugados, com um aspecto pedagógico importante.

Ao contrário, entretanto, sobrevém o seu caráter estético: a ideia de “condenação”, diferentemente da ideia de mera “exploração”, identifica o sujeito condenado como responsável pela própria exploração. Fato divino, carma, culpa, dolo, dívida: a qualquer elemento dessas categorias pode o condenado ser responsável, mas ele é responsável por seu sofrimento, diferentemente do meramente explorável.

Outra diferença crucial é que o “condenado” vê-se alienado pela falsa esperança de superá-la à sua condição: pagando sua dívida, aceitando sua punição. Pagar a dívida e aceitar o sofrimento tornam-se caminhos críveis para libertar-se da exploração, por mais absurdo que o raciocínio nos possa parecer. A “condenação”, diferentemente, o impõe e o legitima.

Mais do que “Pareciam condenados”, eram todos, de fato, explorados. A consciência – não explícita – disso parece trazer à baila uma nova realidade, que já não se ilude em cantigas com a possibilidade de superação da condenação, mas mera constatação da exploração sem-fim: “Agora, o povo das vilas nem conhece as mulheres que voltam das searas e dos arrozais quando as vê passar, no largo, de jornada para o sul. Vão sequinhas e amarelas como se fossem velhas – sem uma fala, sem um sorriso – o rosto parado debaixo do lenço” (FONSECA, 1984, p.112)

Um elemento libertador da Educação está aí: tornarmo-nos consciente da exploração que sofremos, e não de nossa “condenação”, pois que não somos passíveis de punição legítima simplesmente por existir, um sentimento comum em nossa sociedade contemporânea. Aqueles que lutam pela utopia e a própria utopia de um mundo sem exploração são prontamente criminalizadas e condenáveis. Pelo contrário, é preciso louvá-la para que ela se possa realizar um dia, em uma vida coletivista de fato. Ao que termino o texto com um claro chamado: “descriminalizem a utopia!”. 

 

Para saber mais
FONSECA, Manuel da. Maria Altinha. In: SALEMA, Álvaro. Antologia do Conto Português Contemporâneo. Lisboa: Ministério da Educação, 1984. . Acesso em 15jul. 2020. p. 109-113.


Imagem de destaque: Instituto de língua e cultura portuguesa

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