Espaços de figura(ção): quadrantes, olhares e tonalidades paulistas em Almeida Júnior

Taís Temporim Almeida*

Ao longo do século XIX, no Brasil pós-independência, os debates centrados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) representaram importantes proposições à construção social do imaginário oitocentista. Sobretudo, ao articularem concepções diversas na formulação de tipos ideais de brasilidade, a partir de dadas noções de história, arte e academicismo, que tinham a função de fomentar o reconhecimento de uma identidade política nacional. Destarte, em ambas a instituições foram acionados sentidos narrativos e textualidades de uma composição plástica e letrada circunscrita por uma compreensão histórica marcada pela continuidade, pelos grandes ancestrais e heróis, versão a qual é associada, de maneira evidente, a determinados interesses e prerrogativas sociais.

Não obstante, essa busca por uma concepção de ideários, notada na esfera nacional, também é vislumbrada quando redirecionamos nossos olhares a óticas de análise que consideram as especificidades socioculturais das províncias brasileiras naquele momento. São Paulo, por exemplo, possuía uma típica preocupação em meados dos oitocentos: a fundação de imaginários. Essa vertente, estritamente coligada à mentalidade daquele período, permite que sejam lidas em várias pinturas pautas relacionadas à valorização dos feitos e heroísmos nacionais, em grande parte, resultado da correlação dada entre o IHGB paulista e as influências consideráveis que a AIBA, referência de arte no Império, tinha sobre os pintores paulistas e à construção artística do período de um modo geral.

Contudo, deve-se ressaltar como conceituações muito características podem ser notadas na iconografia paulista, haja vista que, mesmo atenta e muitas vezes paralela às possibilidades referenciais da AIBA, em certos momentos e em alguns pintores, encontramos produções direcionadas à formação de ideários partindo de personagens, localidades e traços paulistas. Nesse interim, no referido cenário de constituição de tipos ideias e de pinturas de tons históricos, a edificação de uma memória visual própria dos paulistas encontra no ituano José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899) um nome profícuo ao entendimento dessa lógica, que também dialoga com a conjuntura nacional. Isso porque o ituano, apresentou trajetória artística próxima à AIBA, às academias francesas e a renomados nomes das artes no Brasil. Outrossim, mesmo diante de tais vinculações, ele também promoveu uma forma de composição pictórica que, intermediada pelas convenções estéticas da AIBA, tinha um foco de elaboração de sentido singular: São Paulo.

Suas pinturas, hoje reconhecidos cânones do imaginário paulista, permeiam intentos valorativos sobre uma São Paulo humilde, realista e palpável, com representações que passam pelas paisagens da província, seus sujeitos, tonalidades e tipos próprios da localidade. O que representa uma plástica regionalista em oposição a um contexto marcado pela valorização do nacional. Essa relação pode ser notada em muitas de suas obras, que expressam diálogos entre o micro e o macro na questão imagética paulista no século XIX: O caipira picando fumo (1893), Cascata de Votorantim (1893), Partida da monção (1897), etc.

Partida da monção, por exemplo, pode ser lida como uma produção alinhada à tentativa de materializar os feitos dos heróis, tal qual realizou a AIBA em escala nacional, embora o enfoque recaia sobre o regionalismo do bandeirantismo. Logo, o quadro recebe a conotação de versão historiográfica e/ou representação do passado, a qual atende, invariavelmente, à ideologia vigente de representação da tradição gloriosa da qual os paulistas faziam parte. No entanto, mais do que criar imagens de um passado, as construções pretéritas da obra podem ser convertidas em pautas que são articuladas ao momento de sua elaboração em que são mobilizados interesses e projeções de sentidos, selecionadas pelo artista, que partiam do período histórico que esse presenciou, bem como de uma movimentação artística própria dos oitocentos.

É por esse motivo que o quadro possui a faceta de uma narrativa de tons diversos pois, ao passo que remete ao passado heroico, sem precisar uma data ou monção, também é confere um destaque ao povo, ainda que em condição anônima. Funciona, assim, como uma alegoria que ressalta a importância do movimento da monção mais do que a figuração de um personagem ilustre e, igualmente, concede lugar a outras manifestações do paulista. Os feitos paulistas, suas potencialidades e autonomia, elementos contemporâneos valorizados na São Paulo de Almeida Júnior, portanto, são selecionados para exprimirem o passado, versão que assume o centro da tela mais do que qualquer personagem. Dentro desse espaço de atuação, o paulista caipira, a mulher, a criança, o trabalhador e a ideia de interiorizar, receberam maior atenção/olhares no quadro, constituindo tonalidades e faces cotidianas e locais que simbolizam a representação de uma ideologia, que valoriza um povo e sua história, e não o herói.

Contudo, não podemos esquecer dos limites da criação plástica dos sujeitos oitocentistas. Quando Almeida Júnior cria, dentro das expressões e posicionamentos regionais, acepções pelas quais é conhecido, devemos interpretá-los dentro de uma produção que passa pela miscigenação, que é sentida nas tonalidades da pele do caipira, pelas paisagens naturais e feitos paulistas, mas que esbarra em uma demarcada limítrofe: as convenções do período. Nesse cenário, sua composição artística não extrapola tais conotações, mesmo que vinculado esteticamente muito mais a uma moralidade própria dos paulistas do que nacional. Almeida Júnior, portanto, produziu em um espaço de encontros dentro da regionalidade paulista, apresentando figurações dos costumes e das cores locais, mas também próximo às intenções da AIBA e do período de todo modo.

*Mestranda da Faculdade de Educação (FE), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro do grupo de pesquisa Memória, História e Educação e do projeto Portal do Bicentenário. Contato: temporimtais@gmail.com


Imagem de destaque: Partida da monção. José Ferraz de Almeida Júnior. 1897. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

 

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