Escritos e leitura no terreiro do colégio: escolarização e independência na Bahia

Ione Celeste Jesus de Sousa*

Um texto, mesmo que informativo, sobre a escolarização bahiense no período da luta da Independência na Bahia deve considerar a peculiaridade do 02 de julho de 1823, 10 meses após o 07 de setembro de 1822, com a expulsão das tropas do comandante português Ignácio Luís Madeira de Mello.

Imagens sobre o terreiro do colégio (atual de Jesus), local do mais prestigioso estabelecimento de ensino da cidade – o Colégio Cirúrgico, fundado em 1808, mas que até 1759 fora Colégio dos Jesuítas – registram um lugar de memória da escolarização e de ações políticas na “cidade da Bahia”, como era chamada Salvador, em cujas proximidades outras instituições escolarizantes existiam, todas fundadas durante o governo de D. Marcos Noronha Brito, 8º Conde dos Arcos, como a escola  de Comércio e de Agricultura; a de matemática; o curso de Artilharia;  as cadeiras de Desenho e Escultura. Nesta capitania, em 1822, existiam 25 cadeiras de primeiras letras e 11 de gramática latina, além de aulas régias maiores de desenho, filosofia racional e pura, retórica e grego.

Foi um período de profundas disputas entre os grupos sociais constituídos pelas elites letradas – professores das aulas régias, além dos funcionários da administração colonial; pelos senhores de engenho e seus representantes; pelo expressivo contingente de comerciantes de grosso e de miudezas numa cidade portuária, ainda a principal do Brasil.  Nesta categoria ocupacional avultavam os dedicados ao comércio de escravos entre a Bahia e a costa d’ África, ainda não considerado “comércio infame”, ao contrário, esteio socioeconômico da província.

Do comércio faziam também parte os caixeiros das casas comerciais, em diversas atividades, desde os analfabetos aos que tinham rudimentos de escrita e contas, até os que dominavam a escrituração comercial como guarda-livros. Em 1815 uma aula de comércio tenha sido instalada, particular, sob a regência de Genuíno Barbosa Betânio, sendo os programas registrados na Junta de Comércio.

Este foi secundado pelo madeirense Euzebio Venério, cuja casa de educação era intitulada “Desejo da Ciência”. Seu programa tinha aulas de inglês e francês, de prática de escrituração e direito mercantil, mas também de Geografia e História para conhecer o que denominava “modas dos vizinhos e seus caprichos”, e assim, suas atitudes diante das guerras, seus tratados e alianças, importantes para decisões práticas de comercialização.

O acompanhava nas atividades de magistério sua senhora, Angelica Venério que ministrava aulas de moda comercial, além de reger uma aula de primeiras letras para meninas, que se situava na parte baixa da cidade, na freguesia da Conceição, seu principal pólo comercial, em conjunto com a freguesia contígua do Pilar, ambas no porto da Bahia.

A segunda imagem é do mesmo local, o terreiro do Colégio, que as roupas femininas indicam ser de período posterior, do meado do século XIX, mas que serve ao objetivo deste artigo: destacar a pluralidade de sujeitos que circulavam pelo local, situado na freguesia da Sé que congregava as instituições de governo. Nela estão registrados sujeitos que circulavam no seu agitado cotidiano- estudantes, padres, homens de casaca, vendedores e mulheres vestidas com roupas fechadas e escuras, como era padrão da época.

À direita, ao alto, bem na frente da porta do prédio do colégio, um grupo de homens está reunido em conversa, provavelmente circulando notícias lidas em  escritos como jornais e cartas.

Estes escritos – como os jornais O Constitucional, Diário Constitucional e o  Semanário Cívico, todos editados entre 1820 e 1822, ou ainda a Idade d’Ouro do Brazil, pioneiro da imprensa brasileira de 1811, que durou até 1823 – podem ter sido lidos em voz alta nas casas senhoriais -tanto nos serões particulares, como nos encontros de conspiradores e revolucionários já conhecidos como Cipriano Barata. Da mesma forma, e isto importa mais, podem ter sido lidos ou tinham seu conteúdo “contados” em voz alta eram em espaços públicos como nas tabernas, nas salas de reuniões de estabelecimentos de ensino, nas portas de igrejas e nos ajuntamentos de sujeitos populares.

Possivelmente, muitos destes ajuntamentos tiveram lugar neste Terreiro do Colégio, no período de 1821 a 1822, onde as notícias de Lisboa eram lidas, ouvidas e discutidas as atividades e deliberações do parlamento português, que recebiam apupos ou “vivas” e “apoiados” dos grupos por e contra os portugueses. A ressaltar que a Bahia tinha enviado deputados as Cortes Gerais de 1820, como Luís Paulino D’ Oliveira Pinto da França. Este trocou cartas com sua esposa, D. Maria Barbara Madureira, que registram experiências dos sujeitos das elites baianas, especialmente do recôncavo e da cidade de Salvador, como a falta e aumento no preço dos víveres. Estas notícias eram socializadas e circulavam entre os grupos sociais, promovendo diferentes atitudes.

Esta circulação de notícias sobre a Independência chegou até o conhecimento das camadas mais subalternizadas, que reivindicaram ao seu modo a Independência, como os escravos, alimentando o vulcão das revoltas que já vinham assolando as freguesias rurais e o recôncavo desde a passagem do século XVIII. Escravizados conhecedores das notícias de Liberdade e Independência as incorporaram como também relativas a Si, numa tradição de rebeldia e resistência, evidenciando as múltiplas leituras dos escritos sobre e da própria Independência para os diversos sujeitos sociais que compunham a sociedade bahiense e brasileira.

Referências:
Registros sobre Eusébio Venerio; Angélica Venerio. In  CHAVES,C.M.G. As aulas de comércio no Império Luso- Brasileiro: o ensino prático profissionalizante.

*Professora Adjunta na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/BA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa História da Educação, Infância e Centros escolares – HISTEICE.


Imagem em destaque: “Catedral Basílica do São Salvador da Bahia”, IPAC, 2ª ed., Salvador, 2002. / Wikimedia Commons

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