Em Portugal, um projeto educativo municipal em curso: como o perspetivam os docentes – exclusivo

Carlos Manique da Silva

Em Portugal, desde os meados da década de 1980 que se tem assistido a uma transformação do papel do Estado na administração da educação, no sentido da transferência de poderes e funções dos níveis nacional e regional para o nível local; o mesmo sucedeu, aliás, em outros países da Europa, nos Estados Unidos da América e na Austrália (Barroso, 1999). No caso português, as medidas tomadas até ao final dos anos de 1990 tiveram um impacto limitado, não se traduzindo “na criação e desenvolvimento de um verdadeiro sistema de gestão local da educação” (Barroso, 1999, p. 139). Entre essas medidas, destacaria as seguintes, baseado, ainda, na citada investigação de João Barroso: medidas de desconcentração territorial e funcional de serviços da administração central do Ministério da Educação, as quais estiveram na génese das direções-regionais (Decreto-Lei n.º 3/87); constituição dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (Despacho 147-B/ME/96), consagrando a possibilidade de os estabelecimentos de educação e ensino se agruparem em função dos contextos sociais em que se inserem, particularmente em áreas económica e socialmente carenciadas; criação dos agrupamentos de escolas (Despacho 27/97), conduzindo à gestão conjunta de redes de escolas do mesmo ou de diferentes níveis de ensino (respetivamente, agrupamentos horizontais e agrupamentos verticais); Regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar, dos ensinos básico e secundário, assim como dos respetivos agrupamentos, consagrando a autonomia das escolas (nos domínios pedagógico, administrativo, financeiro…), em função dos contextos específicos de cada unidade educativa (Decreto-Lei n.º 115 A/98). Este diploma prevê, ademais, a existência de um “contrato de autonomia” entre a escola e a direção-regional da respetiva área de influência.

No final do milénio Barroso (1999, p. 139) clamava por uma alteração das políticas e das práticas existentes, sublinhando, por exemplo, a “necessidade de articular as medidas de reforço da autonomia das escolas com o processo de transferência de competências para as autarquias, num quadro mais vasto de territorialização das políticas educativas”. A verdade é que esse processo veio a intensificar-se no decurso dos anos de 2000. Considere-se, a título de exemplo, os seguintes diplomas: Decreto-Lei n.º 7/2003, que regulamenta os conselhos municipais de educação e aprova o processo de elaboração da carta educativa, transferindo competências para as autarquias locais; Portaria n.º 265/2012, que define as regras a observar quanto à celebração, acompanhamento e avaliação dos contratos de autonomia; Despacho normativo n.º 13-A/2012, que visa estabelecer os mecanismos de autonomia pedagógica. Sem embargo, o desenvolvimento da autonomia das escolas – implicando mudanças políticas, culturais, organizativas e pedagógicas – é ainda hoje tímido. Efetivamente, não basta plasmar na letra da lei, entre outras diretrizes, que se deixa ao “critério dos órgãos da escola a decisão sobre as atividades que melhor promovam o sucesso escolar dos alunos, bem como os recursos humanos a afetar às mesmas, tendo por base critérios de melhoria da aprendizagem dos alunos” (Despacho normativo n.º 13-A/2012, de 5 de junho).

O que também me parece importante afirmar é que estamos perante duas grandes tendências, no que às políticas de descentralização educativa atualmente em curso concerne, obrigando, aliás, a precisar conceitos: por um lado, o de municipalização, “quando aplicado à transferência de poderes e competências nas autarquias locais, especialmente os municípios”; por outro lado, o de autonomia, “quando essa transferência se processa para as escolas” (Justino, 2012, s. p.). Mas, como refere o mesmo investigador, “raramente, no caso particular português, resultam da iniciativa e reivindicação das comunidades e poderes locais” (Idem). 

Ora, aquilo de que me quero ocupar no presente texto diz exatamente respeito a um processo de municipalização (em curso desde 2013). Situemo-nos. O contexto é o do município de Mafra, sub-região de Lisboa. Em 2003 é constituído o Conselho Municipal de Educação de Mafra, tendo, entre outras atribuições legalmente cometidas (cf. Decreto-Lei, n.º 7/2003), a responsabilidade de acompanhar o processo de elaboração e de atualização da Carta Educativa, a qual pressupunha uma colaboração estreita entre os órgãos municipais e os serviços do Ministério da Educação. A referida Carta foi elaborada pela Câmara Municipal, em 2005, e homologada pela ministra da Educação no ano seguinte (cf. Projeto Educativo Municipal de Mafra, 2013). Estamos, pois, a falar de regulação partilhada (Justino, 2012).

O Projeto Educativo Municipal (PEM) de Mafra[1] surge na sequência das referidas medidas desenvolvidas desde 2003. Resulta, assim, em primeira instância, da iniciativa do poder central. Não obstante, trata-se de um processo discutido, conduzido e definido a nível local, o qual tem como preocupação conciliar os projetos educativos das escolas com a definição de uma política local de educação. De resto, o PEM é definido pelos seus autores “como [sendo] o instrumento de realização de uma política educativa local, que articula as ofertas educativas existentes, os serviços sociais com os serviços educativos, promove a gestão integrada dos recursos e insere a intervenção educativa numa perspetiva de desenvolvimento da comunidade e de promoção da qualidade de vida” (PEM, 2013, p. 14).

Não cabe aqui analisar em detalhe o PEM ou, mesmo, avaliar o sucesso ou insucesso das medidas propostas; trata-se de um documento extenso e, em alguma medida, complexo, sem esquecer o facto de a sua implementação ser recente. Interessa-me, sim, perceber que significado tem para os docentes, como o perspetivam. Para o efeito, basear-me-ei num documento[2] produzido no âmbito de um Encontro de formação de professores, no início de setembro de 2014. Versando o tema da supervisão pedagógica na articulação curricular – tema cujo aprofundamento constitui, de resto, um dos objetivos do PEM – foi promovido e organizado pelo Centro de Formação da Associação de Escolas Rómulo de Carvalho (CFAERC), sediado em Mafra, na Escola Secundária José Saramago. Trata-se de uma entidade que, a nível concelhio, desempenha um papel relevante na formação contínua de pessoal docente e não docente.

Ora, o CFAERC, consagrado no PEM como entidade parceira, procurou, através da realização do mencionado Encontro, não só abordar a questão da supervisão pedagógica na articulação curricular como, também, dar corpo a uma das iniciativas previstas no documento que temos vindo a acompanhar: a de “reforçar os mecanismos de comunicação e espaços de diálogo tendo em vista a adoção de procedimentos comuns e a divulgação de boas práticas” (PEM, iniciativa 27).

Um dos tópicos abordados nos diversos grupos de trabalho – constituídos em função dos níveis de ensino e dos grupos disciplinares e contando, no fundamental, com a presença de coordenadores de departamento – teve que ver com a perceção que os docentes tinham do PEM.

Em primeiro lugar, interessa dizer que nem todos os grupos de trabalho manifestaram opinião a respeito deste documento, algo que se afigura significativo. Por outro lado, deve afirmar-se que é de algum modo consensual a ideia de que a existência de uma regulação a nível local tem permitido melhorar o diálogo entre os diversos atores educativos. No entanto, sublinha-se que é preciso verificar a sua eficácia e que não basta pensar o sucesso escolar em função de indicadores (i.e., de números). Outra das tónicas é a de que o PEM deve salvaguardar as especificidades e as realidades dos agrupamentos de escolas do município. Ou seja, esse pressuposto deve ser mantido, não obstante ser importante haver uma componente de reflexão partilhada de problemas educativos no sentido da construção coletiva (a nível local) de respostas mais assertivas e adequadas. Mais, um dos grupos de trabalho enfatizou mesmo que a autonomia pedagógica das escolas não pode ser minimamente diminuída. Essa prerrogativa, chamemos-lhe assim, é reclamada, por exemplo, no que concerne à escolha dos cursos profissionais, os quais devem ser, lê-se no mencionado documento, mais adaptados ao contexto de cada escola.

Dir-se-ia, em síntese, o seguinte. Por um lado, os docentes consideram importante a troca de experiências e o trabalho colaborativo num sentido mais abrangente, isto é, que ultrapasse o universo do seu Agrupamento de Escolas/ Escola não agrupada. Há situações, de resto, em que se propõe a utilização de documentos de trabalho comuns a todas as escolas do município (por exemplo, relatórios dos diretores de turma). Mas, por outro lado, pugna-se pela afirmação da autonomia pedagógica de cada escola.

Aquilo que me parece importante frisar, agora numa nota mais pessoal, é que o PEM não deve ser perspetivado num sentido estrito e fechado. Ou seja, nem tudo tem de ser “normatizado”, nem tudo tem de ser “medido”. E deve contemplar uma dimensão prospetiva no sentido da inovação. Penso, por exemplo, no desafio de inventar novos sistemas de formação intelectual – neste capítulo, como nota Lipovetsky (2009), tudo ou quase tudo está por pensar.

Por outro lado, importa reforçar a autonomia das escolas num aspeto que considero absolutamente decisivo: o da transformação das práticas pedagógicas. A autonomia, como refere Barroso (1999, p. 141), deve querer significar “substituir o princípio da homogeneidade […] pelo princípio da diversidade”. O mesmo é dizer, “passar de uma lógica de uniformização […] para uma lógica de individualização; passar de uma lógica disciplinar para uma lógica transdisciplinar; passar da rotina da lição para a inquietude do projeto” (Idem).

Os contratos de autonomia com o Estado – assinados em janeiro de 2014 pelos quatro Agrupamentos de Escolas e pela única Escola não agrupada do concelho de Mafra – devem constituir uma oportunidade para as unidades educativas gerirem com maior liberdade os currículos e as cargas horárias, definirem os seus próprios métodos e conteúdos, bem assim como estabelecerem estratégias no sentido de implantarem uma “pedagogia do sujeito”, para adotar a expressão de Philippe Meirieu.

Não queria terminar sem dizer o seguinte. É indispensável dar espaço para que experiências pedagógicas que estão a despontar no município – à margem do sistema de ensino oficial e fora do enquadramento do PEM, mas plenas de significado – possam ganhar corpo e assumir um estatuto alternativo.

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