EJA do futuro

Pedro Lobato¹

A construção do conhecimento sobre a Educação de Jovens e Adultos no Brasil nos leva a compreender a modalidade como um elo na corrente de uma educação popular, inclusiva, resistente, que se liga à educação do campo, à educação indígena, à educação quilombola, à educação inclusiva. Pode-se, portanto, entender a EJA como um campo de uma educação que experimenta, ela já nasce de um questionamento, de um esgarçamento do currículo escolar, uma educação que, a princípio, é feita para as exceções, para aqueles que não se adaptam ao padrão que se espera. É a confissão da escola: eu fui feita para o cidadão branco, burguês, de costumes europeus. Aos demais, eu preciso “me adaptar”. A palavra esgarçamento é porque imaginei a escola como um pano, uma trouxa, um balaio, que se esgarça pelos atritos entre o dentro e o fora, mas também porque ficou apertado para tudo que ele deseja conter.

Pensar/agir a EJA traz consigo toda essa carga de luta, de encarar o peso da realidade colonial que subordinou e ainda subordina populações e culturas a um lugar de exceção dentro da normatividade branco-europeia. Este tem sido o lentilongo esforço pelo direito de todos à educação, dentro do qual temos um marco nos anos sessenta e setenta, com Paulo Freire e os desdobramentos da Educação Popular, e um outro marco nos governos do PT em que, ao menos no que tange à legislação, incorporou-se algo de tais reflexões, pensando todo um sistema de inclusão das classes mais pobres na educação formal e também nessa adequação do processo escolar às diversas e conflituosas realidades de um país enorme e tão plural. Fazer cumprir as leis no Brasil é que é outra história…

Hoje, há um reconhecimento legal da importância da EJA e de sua compreensão enquanto modalidade que deve criar seus próprios caminhos, que não pode ser apenas uma transposição de um currículo escolar para uma realidade diversa, mas a criação mesmo de uma educação própria, feita para pessoas diversas que não podem mais ser pensadas (como se as crianças e jovens pudessem) como papéis em branco, como massas de modelar às quais a escola e os processos de civilização devem moldar para se alcançar um desejado fim. O campo da EJA deve permitir a criação, a experimentação, permitir que se pare um pouco a máquina de moer gente e que se olhe de fato para as pessoas que ali estão, que nos olhemos entre si. É uma educação que pode perguntar, o que queremos, o que buscamos aqui?

O professor faz a diferença quando ele de fato vê o aluno. Minha companheira me lembrou disso em uma conversa hoje cedo, contando como nunca se esqueceu das professoras que lhe deram força nos tempos de colégio. Eu e ela somos artistas e passamos pela escola pública, mais pelas frestas que pelas provas. Encontramos muitos professores que eram como desafios ou muros intransponíveis, mas alguns nos enxergam, e nos colocam para frente, elogiam nossa letra redonda, nossos poeminhas e nossos desenhos, nos põem para enfeitar a sala, escutam nossas choradeiras e dizem que, apesar de tudo aquilo, nós éramos legais. Esse vínculo que se cria, mesmo que dure só alguns minutos, nunca é esquecido.

E então, a pandemia… assim, interrompendo tudo, o raciocínio também.

Qual o futuro da EJA? Não temos dúvida de que o mercado quer o cliente, haverá um mercado para a EJA. Ao contrário da escola tradicional, pensada a princípio para crianças, a Educação à Distância por meio das tecnologias digitais nasce andragógica, pensada para adultos, e só agora começa a abarcar tudo, incluindo a educação infantil. A questão será: A serviço de que estará a EJA do futuro? Como diz Licínio Lima, estará a serviço da formação de indivíduos mais úteis e competitivos, ou mais livres e humanos?

Paulo Freire (viva seu centenário!), sobre as tecnologias, assim escreveu, em Sobre Educação (diálogos), 1984:

“Em primeiro lugar, faço questão enorme de ser um homem de meu tempo e não um homem exilado dele, o que vale dizer que não tenho nada contra as máquinas. De um lado, elas resultam e de outro estimulam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que, por sua vez, são criações humanas. O avanço da ciência e da tecnologia não é tarefa de demônios, mas sim a expressão da criatividade humana. Por isso mesmo, as recebo da melhor forma possível. Para mim, a questão que se coloca é: a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão? Quero saber a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão postas em uso. Então, por aí, observamos o seguinte: Não é a informática que pode responder. Uma pergunta política, que envolve uma direção ideológica, tem de ser respondida politicamente. Para mim os computadores são um negócio extraordinário. O problema é saber a serviço de quem eles entram na escola. Será que vai se continuar dizendo aos educandos que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil? Que a revolução de 64 salvou o país? Salvou de que, contra que, contra quem? Estas coisas é que acho que são fundamentais.”

Concordamos: Tais questões se fazem, hoje mais que nunca, fundamentais. 

 

1Artista popular e professor de língua portuguesa. Mora e trabalha como professor efetivo na rede estadual, na cidade de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Pesquisa as relações entre a EJA e a cultura popular, mestrando na FAE/UFMG. Publica seus trabalhos no site cipoesia.com.


Imagem de destaque:TCEMG / Flickr

 

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