Educação infantil e relações raciais: a história de Ruby Bridges – exclusivo

Maria Cristina Soares de Gouvêa

Há alguns meses atrás, vi na internet a perturbadora imagem em preto e branco de uma criança negra norte americana, impecavelmente vestida, chegando á escola acompanhada de 3 agentes federais, em 1960, enquanto uma multidão enfurecida, composta por pais, mães e mesmo crianças gritava e empunhava cartazes com dizeres como: “Não queremos integração”, “ Niggers1 fora da nossa escola”, “ Não quero estudar com niggers”, “ No Natal, quero de presente uma escola branca e limpa” .

Ruby Bridges escoltada por agentes federais em seu primeiro dia de aula.

Impressionada com a força da imagem, pesquisei na internet e deparei-me com a singular história de Ruby Bridges, a primeira criança negra a frequentar uma escola integrada no sul dos Eua, na época com 6 anos de idade.

Embora sua história fale de uma realidade distinta da nossa, no que se refere às relações entre educação e raça, as semelhanças na experiência do racismo vividas por uma criança, sem dúvida nos ajudam a pensar nas crianças negras e pardas brasileiras, em sua trajetória escolar. Especialmente no caso da educação infantil, em que os processos identitários ancoram-se na materialidade do corpo e dos referenciais estéticos. Podemos obervar, por exemplo, que crianças ( e também adultos ao se dirigirem a elas) estabelecem uma sinonimia entre bom/ bonito, em oposição a ruim/ feio, bem como tais denominações, numa sociedade atravessada pelo racismo, recebem conotações raciais.

Além disso, a cultura material da educação infantil não provém as crianças negras de materiais que possibilitem a construção de uma identidade positivada, na ausência de bonecas negras ( que, quando existem, são muito mais caras), lápis de cor em que a chamada cor da pele não seja bege, cartazes em que as crianças negras sejam retratadas e livros de literatura que, por força da lei, hoje são felizmente, bem mais abundantes. Todos estes elementos configuram para uma criança negra, ao entrar na escola, um sentimento de invisibilidade, ou em muitos casos, rejeição, que comprometem a construção de sua identidade racial.

Mas voltemos ao caso de Ruby. Nascida em 1954, de uma família muito pobre de meeiros que trabalhavam em plantações do sul dos Eua, a qual mudou-se para Nova Orleans onde teria melhores chances de trabalho e educação dos filhos.

Morando num bairro negro, Ruby tinha pouco contato com brancos, estudando numa escola infantil dirigida à população afro descendente, num contexto em que a segregação racial nas escolas era sinônimo de oferta de educação de pior qualidade para esta população.

Na verdade, a segregação racial em estabelecimentos públicos e privados, havia sido proibida pela Suprema Corte Americana em histórica decisão em 1954. Porém, foi acintosamente ignorada em alguns estados do sul do país, em que os negros só tiveram acesso ao direito do voto na década de 60. Cabe observar o forte federalismo do sistema político e judiciário norte americano, em que alguns dos direitos civis eram ( e são) sujeitos a leis estaduais.

Em 1960, sob pressão do crescente movimento dos direitos civis, o governo federal interviu, estabelecendo um programa de integração racial nas escolas sulistas, que deveria começar na educação infantil. Na cidade de Nova Orleans foi feita uma rigorosa avaliação em que apenas 5 crianças negras foram aprovadas para frequentarem escolas até então dirigidas exclusivamente à população branca, sendo Ruby uma delas.

As demais famílias desistiram, temerosas do impacto de enviarem seus filhos para escolas onde seriam hostilizados. Os pais de Ruby (especialmente a mãe), optaram por enviar a filha para a primeira escola integrada, por um lado, pela oportunidade de acesso a uma escola de qualidade, por outro, por acreditar que esta era uma luta de toda população afro descendente na conquista de direitos.

Voltemos então à imagem que retrata não apenas o primeiro dia de aula, mas todo o ano escolar desta criança de 6 anos que pouco entendia o que estava ocorrendo. Ruby em seu livro infantil: “ Through my eyes” (Através do meu olhar) , relata que, ao chegar à escola, deparou-se com um lindo prédio, acompanhada de policiais gentis, enquanto uma multidão gritava, fotógrafos e câmaras de TV registravam o que para ela era uma cena relacionada às comemorações do Merdi Grass (um tipo de carnaval em Nova Orleans).

Protesto a favor da segregação.

Em seus depoimentos, Ruby afirma que levou tempo para entender o que ocorria. Ao ouvir gritos e insultos, evocava as recomendações da mãe e do pastor e recorria à preces, ou pensava em coisas como aniversário, ou a festa de natal, para não prestar atenção à multidão e sentir-se segura. Ao ouvir o bordão dos protestos: “One, two, three, four, eight, we dont want to integrate”, ensinou a música a suas amigas negras, sem entender o significado da rima.

Dois acontecimentos foram significativos. Um dia, uma manifestante levou uma pequena caixa, com uma boneca negra no seu interior, representando um caixão, dizendo que iria envenena-la. Em suas palavras, neste momento ficou realmente assustada, tendo parado de comer a merenda escola, com medo que estivesse envenenada. Noutra situação, ao deparar-se com um menino branco dentro da escola, convidou-o para brincar. Este respondeu que sua mãe o havia proibido de brincar com “negroes”. Ruby então entendeu que toda agressividade dirigia-se a ela, por sua cor de pele (palavras suas).

Se fora da sala de aula a criança enfrentava tais hostilidades, o que explica nunca ter faltado e “ adorar” a escola (segundo seu depoimento), era sua professora. Grande parte dos pais retirou os filhos, os professores também recusaram-se a ensinar para uma criança negra. A docente que a aceitou, Barbara Henry, vinha de Boston2, onde não apenas as escolas não eram segregadas, como na sua formação foi destacada a importância da integração racial.

Durante um ano, a criança aprendeu numa sala de uma única aluna. Em seu depoimento, afirma que quando conheceu a professora assustou.-se, porque nunca havia visto uma professora branca. Porém, logo certificou-se que “era a melhor professora que havia tido”. Nos depoimentos da docente, esta evoca que ensinava todos os conteúdos á criança( de educação física, à música, alfabetização e matemática), tentando criar um oásis na sala de aula que as isolasse do mundo.

No livro infantil Ruby assim relata: “eu adorava minha professora. Eu era boa aluna, gostava de aprender matemática e a ler e escrever. Mas eu queria brincar com outras crianças. Eu nunca via outras crianças na escola. Passaram-se meses e meses, até que um dia, outras crianças vieram brincar. Eu fiquei muito, muito feliz”.

Após este primeiro ano, outras crianças negras entraram naquela e outras escolas da cidade, integrando-se nas salas de aula em 1961. Evidentemete isto não significou o fim do racismo, dentro ou fora da escola, mas o fim da segregação racial escolar institucionalizada.

Podemos pensar sobre vários elementos a partir deste evento. No caso dos pais, o investimento na escolarização e um vínculo comunitário fundado na religiosidade que os fez apoiar a criança, dando segurança para viver situações tão hostis (vínculo este característico das comunidades afro descendentes norte americanas). No caso da professora, um investimento não apenas profissional, mas pessoal, fundado em referenciais éticos construídos ao longo de sua trajetória. Em suas palavras : “toda minha vida, de certa forma, tinha me preparado para estar ali”.

No caso das criança, o olhar diferenciado do adulto, na maneira como significava tal experiência. Se a segurança manifestada na maneira com enfrentou uma multidão hostil era solidamente ancorada no apoio familiar, comunitário e da professora, por outro, sustentava-se numa perspectiva, fartamente relatadas por outras crianças em situações traumáticas3, em que a imaginação permitiu-lhe distanciar-se da realidade, amortecendo seus efeitos.

Trazendo para o contexto brasileiro, evidentemente com contornos muito distintos, isto nos faz indagar: como nossas crianças negras, no início de sua escolarização, significam uma experiência cotidiana de apagamento ou desqualificação de sua identidade racial?

Para saber mais:

*BRIDGES, Ruby. Through My Eyes, New York: Scholastic Press, 1999 Teaching Ruby Bridge: Barbara Henry interview. Boston Globe magazine. 14 jun. 2014. Acessado 27 de outubro de 2015.

*Ruby Bridges.Estudio Disney, 1998. 

*BBC documentary. Ruby Bridges Attends an all-white School .

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