Deuses Econômicos e a Pedagogia Libertária

Rafael Muller

Entre todos os homens, só há um verdadeiramente piedoso: o rico. Só ele é o eleito de deus. (MACHADO, 1976, p.35). 

Essa é a perspectiva de C. Pedânio, personagem aristocrata de Dyonelio Machado em Deuses Econômicos e que entra em linha de fronte de debate com L. Sílvio, propagador dos textos de Yoshu Nosri, considerado um subversor da ordem por pregar a igualdade dos homens perante deus.

Além de um trabalho profícuo de pesquisa sobre a realidade social no centro greco-romano do século I da Era Cristã – “um romance historicamente certo”, nas palavras do autor –, a obra de Dyonelio Machado aproxima do leitor modelos econômicos e doutrinas políticas e filosóficas incorporadas em cada um de seus personagens, dando visibilidade à postura adotada por cada uma delas em cada um deles em relação à desigualdade, à escravidão, à divisão do trabalho, à [falta de] liberdade, à repreensão e atividade policial, etc.

Nos calorosos debates entre personagens representantes das diversas divisões da aristocracia e as diversas vertentes progressistas, está em posição de centralidade o fato de a grande massa estar lançada à escravidão: “no tempo em que o tribuno L. Márcio propunha a sua lei agrária, não chegava a haver em Roma dois mil cidadãos que fossem proprietários, quando justamente o censo acusava o número de quase meio milhão de cidadãos inscritos” (MACHADO, 1976, p.103-104) – uma concentração das riquezas na mão de 0,4% da população, cifras muito próximas à nossa realidade contemporânea e que se tornam cada vez mais alarmantes, vide a concentração de riquezas ocorrida em plena pandemia, em especial pelos bancos que lucraram e engordaram suas reservas de provisões.

O contraponto pedagógico e crítico no texto surge em Evandro, personagem afiliado às doutrinas filosófico-políticas do ceticismo, niilismo e anarquismo, e que luta incessantemente pela formação crítica do povo para que o próprio povo conduza à revolução necessária para a manutenção da vida em terra. Ele-Evandro reconhece que de nada adianta formar as classes dirigentes, uma vez que todo conhecimento necessário parte do povo e deve dirigir-se ao próprio povo: sobre sua condição de iguais perante a natureza e desiguais perante os homens. Alinha-se, pois, aos preceitos da pedagogia libertária, criticando a “benéfica separação entre senhores e escravos” (MACHADO, 1976, p.36) como uma estratégia da aristocracia para a manutenção da ordem e da submissão.

Na trama, que acompanha especialmente a saga de Sílvio pela região, ele-Sílvio vai se convencendo progressivamente – à similitude do gesto maiêutico – da necessidade da revolução para impedir a derrocada geral do mundo moderno (século I da Era Cristã).

Sílvio se preocupa como ele – da classe dirigente, ainda que decadente – poderia colaborar para evitar o fim do mundo. Ele questiona-se: “se todos pensarem primariamente como Isócrates ou displiscentemente como Heliodoro ou confiadamente como seu pai, como poderá a sua classe – que é a classe dirigente da sociedade – impedir a consumação do desastre?” (MACHADO, 1976, p.103)

As previsões não se concretizaram – ou se concretizaram? O mundo moderno ainda não acabou para alguns, mas para muitos ele nunca existiu: a escravidão se reinventou, os embates filosóficos são da mesma ordem, as religiões todas se parecem. A estrutura fundante da economia – baseada na exploração – se sustenta. 

Seguindo as palavras de Sêneca, também selecionadas e traduzidas pelo autor: “Nascemos para viver em comum. Nossa sociedade assemelha-se muito às pedras duma abóbada: que hão de cair, a não ser que uma, à outra, sustente.” (SÊNECA apud MACHADO, 1976, p.93)

Sustentamos, portanto, essa sociedade-abóboda como está: estruturada sob a égide da exploração econômica. Seria chegada a hora de virar o jogo e construir uma nova abóbada?

Acompanhar Sílvio passando pelas diversas fases que isso implica é um prazer e um convite à leitura: o medo da desordem, o convencimento pela necessidade de uma revolução a partir de sua interação com Evandro, a admiração ora por um, ora por outro personagem, fantasiando com os diversos modelos de sociedade a que esses propõem, sempre de uma ótica crítica em relação à liberdade e à exploração.

O texto identifica, por fim, que os grandes inimigos do povo são, ao mesmo tempo: os seus senhores e o próprio povo, um dominador pela atividade (coerção) e outro dominador pela passividade (medo).

“A primeira finalidade da filosofia é formar o homem para a vida comum, para a polidez, para a sociabilidade: toda singularidade nos afastará desse objetivo.”
(SÊNECA apud MACHADO, 1976, p.106).

 

Para saber mais:

MACHADO, Dyonelio. Deuses Econômicos. Porto Alegre: Editora Garatuja, 1976.  


Imagem de destaque : Editora Leitura S.A.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *