Das urgências da educação (e sobre o que elas autorizam)

Já há muito tempo estamos acostumados com o emprego de termos próprios à linguagem médica para dizer das coisas da educação. De um modo geral, é comum ouvirmos que as ações adotadas no campo educacional o são como parte de prognósticos baseados em diagnósticos realizados pelos especialistas da área, ou pelo poder público ou, mesmo, pelo público em geral. As ações, assim, seriam como parte de uma terapêutica para tratar de um organismo doente, imagem, aliás, amplamente difundida entre nós.

Mas nenhum dos termos médicos utilizados para referir-se à educação tem tanto impacto quanto aquele que diz das urgências da educação. Como se sabe, a classificação de urgência permite a subversão dos ritos e ritmos usuais dos procedimentos médicos. Mobilizada no campo da educação, a ideia de urgência autoriza procedimentos (de urgência!) que também subvertem a ordem, os ritos e os ritmos das práticas a que a educação está sujeita. Classificar algo como urgente é, pois, abrir caminhos para o estabelecimento de ações que não precisam, por assim dizer, estar sob as regras da normalidade.

Como já se disse, há muito vêm se estabelecendo urgências na educação. Ao longo do século XIX, por exemplo, não poucas vezes afirmou-se a ideia de que era urgente formar os professores e estabelecer novos métodos de ensino. Um exemplo clássico é o de Rui Barbosa que, em 1882, após um amplo diagnóstico da escola brasileira de seu tempo, vaticinava: “Reforma dos métodos e reforma do mestre: eis, numa expressão completa, a reforma escolar inteira; eis o progresso todo e, ao mesmo tempo, toda a dificuldade contra a mais endurecida de todas as rotinas, a rotina pedagógica”

Em nome dessa urgência, ao longo dos séculos XIX e XX foram realizadas um sem número de reformas da formação dos mestres e dos métodos de ensino, muitas delas por decreto, pois a clareza do diagnóstico e a urgência do problema dispensavam amplas discussões. No entanto, como se sabe, chegamos ao final do século XX e início do século XXI no mesmo estado de urgência sobre esses assuntos, e não são poucas as iniciativas autorizadas para resolver o problema. Destas, os cursos ligeiros e a formação inicial de professores por meio de cursos comerciais de educação à distância são apenas algumas das mais visíveis!

Do mesmo modo, os pensamentos social e pedagógico brasileiros produziram, na primeira metade do século XX, o diagnóstico de que o analfabetismo era uma doença, uma chaga que maculava a sociedade brasileira. Desanalfabetizar a população, sobretudo a adulta, passou a ser uma de nossas urgências para adentrarmos no concerto das nações modernas. A resposta a esta urgência veio na forma de campanhas rápidas, de grande visibilidade e apelativas quanto à necessidade de engajamento de todos na solução do problema.

No entanto, apesar do estabelecimento de campanhas que, em sua forma e fundamentos, subvertiam a normalidade da escola, chegamos ao início do século XXI com quase 15 milhões de jovens e adultos analfabetos. E estes, como se sabe, continuam fazendo parte de nossas urgências no campo educacional. E, como tais, continuam a ser objeto não de políticas substantivas, mas de ações que visam, celeremente, resolver o problema.

Poderíamos, é certo, continuar a apontar uma enorme gama de urgências da educação e a indagar sobre os atos e ações que tal estado de urgência autoriza. Não seria este o caso, por exemplo, da ideia da falta de mão de obra qualificada para fazer frente à urgência do necessário aumento da produtividade da indústria nacional? Ou da urgência de ser resolver o problema da alfabetização das crianças na idade certa?

O certo é que as urgências da educação têm autorizado decisões políticas muito pouco democráticas e ações muito pouco eficazes na solução de problemas estruturais da educação brasileira. Mas este não é, no fundo, o propósito da ações de urgência: salvar o paciente para que não morra? Restaria, no entanto, perguntar qual tem sido o preço, para as escolas e seus sujeitos, e para a sociedade brasileira como um todo, dos contínuos estados de urgência a que temos submetido a área da educação.

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