Da Universidade à Política (ou, à corrida eleitoral)

Alexandre Fernandez Vaz

É conhecida a foto de Fernando Henrique Cardoso (FHC) distribuindo, em 1978, material de campanha ao Senado Federal em uma porta de fábrica. Junto a ele, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luís Inácio Lula da Silva, o Lula. Hoje o Sindicato é d@s Metalúrgic@s do ABC, e, desde muito, o depois presidente do Brasil incorporou o apelido ao seu nome.

Fernando Henrique, então abrigado no único partido de oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), encontrou no movimento dos metalúrgicos que sacudiu o país ao final dos anos 1970 um apoio que hoje seria impensável. Em tempos de ditadura, havia uma tendência de as forças democráticas se agruparem em um bloco, mesmo que fragmentado, de oposição. Os generais e seus asseclas civis haviam, aliás, criado os dois partidos: além do supracitado, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), o seu próprio, obviamente o da situação (e que má situação!).

FHC foi um sociólogo importante, catedrático na Universidade de São Paulo até ser compulsoriamente aposentado pelo governo de exceção. Seguiu sua carreira intelectual em outras instituições e fundou, com outros, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), onde parte do pensamento crítico paulista abrigou-se. Na segunda metade dos anos 1970 foi paulatinamente engajando-se na política, acompanhando as brechas que o processo de Abertura (lenta, gradual e segura, dizia um dos generais) oferecia. Com ele, outros professores da universidade e pesquisadores, como Eduardo Suplicy, Elza Berquó, Francisco Weffort e Florestan Fernandes, animaram-se, em diferentes momentos, à disputa de cargos eleitorais.

Um professor ou pesquisador, lembre-se, não é necessariamente um intelectual, embora trabalhe, supõe-se, com ideias, análise, síntese, dedução, crítica etc.  É lapidar a conceituação de Susan Sontag: “Por intelectual, entendo o intelectual ‘livre’, alguém que, além de sua competência profissional, técnica ou artística, tem o compromisso de exercitar (e, portanto, implicitamente defender) a vida da mente [do espírito] como tal. […] Um especialista também pode ser um intelectual. Mas um intelectual nunca é somente um especialista.”

FHC não conseguiu a vaga de senador há 30 anos, mas, ficando na suplência, substituiu André Franco Montoro anos depois, quando ele foi eleito governador do Estado de São Paulo. Em 1986, na esteira do Plano Cruzado, quando o PMDB obteve uma esmagadora vitória eleitoral em todo o país, chegou ao Senado com votação própria, não antes de, no ano anterior, amargar a derrota na corrida para a prefeitura de São Paulo. A vitória de Jânio Quadros (sim, ele retornara) foi expressão do pensamento reacionário que, por sua vez, potencializou sua continuidade. Havia, por exemplo, um grupo de homens jovens paulistanos que se organizava sob o epíteto de anti-gay comander. “O jeito é Jânio”, dizia a campanha do candidato que não compareceu aos debates de 1985, como a demarcar que seria preciso vir um salvador da pátria, uma figura paternalista para dar cabo do caos instalado. Parece que não avançamos muito de lá para cá: a despolitização, a violência e a bizarrice seguem mais ou menos as mesmas.

Apoiador de Eduardo Suplicy, era um prazer para mim assistir, em 1985, aos debates nos quais tomava parte também FHC. Este ainda não tinha vergado para a direita, tampouco era o garante o consenso neoliberal que se tornou nos anos 1990. Nos debates aparecia a soberba que todos conhecemos, mas também o analista sagaz que sabia do movimento da política e da sociedade.

Não é fácil a transição da vida universitária para a política, mais ainda quando é da experiência intelectual para a disputa eleitoral. Intramuros universitários, o intelectual tem um ritmo lento, com consequências relativamente rápidas; a política apresenta ritmo frenético, mas com resultados positivos muito morosos. Se no governo ou no parlamento a coisa não é das mais fáceis, na corrida eleitoral, quando o bom argumento nem sempre conta, e sim a produção de identidade via discurso e imagens carismáticos, tudo ganha coloração própria. É preciso gostar de fazer campanha, abraçar, abanar, sorrir, escutar ou pelo menos fingir que está escutando com atenção, o que, geralmente, é questão para profissionais. Consta que foi o falecido Antônio Carlos Magalhães, coronel da política baiana durante décadas, dono de parte expressiva dos meios de comunicação em seu Estado, em que foi governador e pelo qual foi senador da República, que ensinou FHC as lides do corpo a corpo com o “povo”.

Por outro lado, lembro-me da animada campanha de Florestan Fernandes, em 1986, postulante deputado federal constituinte. Conferências, apoiadores diversos, vontade de disputar no parlamento o texto da Constituição que seria promulgada em 1988. Florestan foi eleito quatro anos depois, a despeito de sua falta de motivação, para mais um mandato. Ao seu final, provavelmente em 1994, já com a saúde debilitada, o grande professor, que fora cassado pela ditadura e orientara o doutorado de FHC, dizia das enormes dificuldades de movimentar ideias na Câmara. Ele confessava sua surpresa em relação à dinâmica do Congresso Nacional, segundo ele muito mais dificultosa do que poderia esperar, com entraves de todo tipo a obstaculizar à discussão das pautas mais progressistas.

Hannah Arendt foi uma crítica radical da perspectiva segundo a qual política e verdade devem coincidir. Para ela, a política é lugar da doxa, ou seja, da diferença, da pluralidade, da tolerância, do acordo possível. Em sentido enfático, da promessa. Por isso sua oposição à ideia do Rei-filósofo de Platão, aquele que dominaria a episteme e com ela governaria a cidade. O impulso à tirania se avizinharia desde logo, sugere Arendt. É uma pena que um intelectual como Fernando Henrique Cardoso tenha renunciado à doxa e à episteme, rendendo-se à tecnocracia e, de certa forma, à desrazão do conflito eleitoral; é de se lastimar que Florestan Fernandes tenha sido aprisionado pela máquina fisiológica da ciranda dos representantes do “povo”, com suas artimanhas regimentais e negociatas em comissões, relatorias, vistas e obstruções.

São os intelectuais impotentes para a política tradicional? Devem manter-se no papel de críticos, renunciando ao enfrentamento das contradições que a ação oferece?

Sul da Ilha de Santa Catarina, junho de 2018.


Imagem de destaque: IstoÉ

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