Da Arte de Organizar o Circo a partir da Jaula dos Macacos: putsch e democracia dos ridículos – exclusivo

Marcus Vinicius Corrêa Carvalho

Para Maria do Carmo Xavier, de grata memória.

Mahatma Gandhi dissera, certa vez, que a democracia como conhecemos não passa de fascismo diluído. Certamente, a contundência da assertiva exacerba-se na medida mesma em que Gandhi não era um militante comunista, socialista ou anarquista. “Grande Alma” era antes, sabemos todos, um pacifista. Mais do que o efeito retórico impactante da declaração, interessa o que ela guarda como potencial crítico que instiga a reflexão sobre o que vivemos em uma rotina acomodatícia e corriqueira de pretensa harmonização consensual que se sustenta sobre uma base de negatividade pacífica e sorridente que oscila entre o cinismo e a esquizofrenia.

Se isso faz sentido e se essa constatação incomoda ininterrupta e inequivocamente, como cisco no olho que fere, dificulta e embaça a visão da realidade que se apresenta à nossa frente, tanto mais em período de erupção purulenta que agrava a cronicidade patológica, expõe-se, então, uma ferida infeccionada por uma história que não podemos esquecer. Assim, após 400 anos de submissão escravocrata, prioritariamente, de trabalhadores negros e negras e de 117 anos de regime republicano no qual não se somam 40 sem regimes de exceção civis ou militares cultivou-se uma tradição de excludência social autoritária, bruta, violenta e preconceituosa que agora, neste ano de 2016, precipita-se em um putsch construído desde, pelo menos, 2014.

Putsch porque pretendo indicar o aspecto ilegítimo de uma ação golpista que pretende urdir-se por aparência, formalmente, legal; ou como qualificou o periódico liberal alemão Spiegel em março: Kalter Putsch: golpe gelado. Afinal, golpistas e fascistas não operam apenas por armas ou ferramentas e instrumentos de violência física, mas também pela, igualmente violenta, atividade de grupos que se impõem à opinião pública como salvacionistas em sua ação descarada, desavergonhada, ousada, contínua, sem descanso, de caráter moralizador que paralisa e oblitera as reações contrárias, insurgindo-se contra regimes e governos desgastados, desorganizados e imobilizados por sucessivas crises políticas.

Na Roma antiga oficiais de justiça caminhavam à frente dos magistrados para chamar atenção e exigir respeito a eles; carregavam um feixe de varas atadas com fitas vermelhas e assentes num poste sobre o qual traziam a lâmina de um machado, simbolizando o poder de punição e execução desses magistrados. Esse feixe de varas chamava-se fascis. Alegoricamente, podemos dizer que, em nosso momento político, os magistrados vêm à frente emprestando respeitabilidade e pretensa legitimidade à atividade golpista, sem deixar que esqueçamos seu poder de castigo. Claro, a fita que os enfeixa é verde e amarela, não vermelha.

Podemos pensar que democracia seja, ao contrário do senso comungado, a ação que arranca, continuamente, dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza, sua pretensiosa onipotência sobre a vida. Um dos valores desse modo de ver seria a ideia de recuperar a força singular que sonhamos como própria à ação democrática. De tal forma, dar-se-ia a ver que essa palavra não designa nem uma forma de sociedade, nem uma forma de governo, lembrando que as sociedades foram e são organizadas historicamente pelo jogo de oligarquias, e que os Estados são, por definição, oligárquicos.

Enquanto vicejam os interesses modulados nesses jogos oligárquicos, recorre-se à interpelação liberal-democrática com manifestações de populismo econômico e político, a qual empresta sentido de polarização a uma modulação institucional que, fundamentalmente, não oferece qualquer possibilidade de escolha à coletividade na medida em que os polos aparentes convergem para o centro gravitacional do poder institucionalizado, autoritária e oligarquicamente constituído.

Na antiguidade grega e romana, a política era tomada como centro da vida pública pelo interesse de dar forma comum ao anseio citadino de verdade, sendo ela considerada tema elevado digno de tratamento pelos gêneros de exercício intelectual superior. Portanto, não relativo ao cômico e ao ridículo. Afinal, o cômico e o ridículo produzem uma esquematização incongruente das figuras em que a deformidade monstruosa dos mistos aplica convenções retóricas e éticas de modo que o público veja, nesses efeitos, a contradição entre o conhecimento que tem das matérias e a deformidade com que os mesmos são representados. O cômico é misto, podendo assumir qualquer forma e sendo adequado para figurar o vício, o qual, por definição, não é unitário e não tem forma racional. Por sua formulação é possível o tratamento da matéria baixa e sórdida sem sordidez. Decaída ao gênero dos ridículos, a política nos oferece agora a oportunidade de que ríamos de nossa própria condição de classe – média –, reconhecendo lucidamente que cultivamos em hedonismo comodista e desprezo autocentrado o solo em que estacamos os pilares da lona que nos cobre, emoldurando o circo em que encenamos a farsa que insistimos em tratar como tragédia. Ríamos, pois, chorar não adianta!

Marcus Vinicius Corrêa Carvalho – Professor da UFF –marcuscarvalho.uff@gmail.com

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