Continuemos naquele carrinho de mão… LGBTQIA+ EJA

Douglas Tomácio¹

Lembro-me, horrorizado, das cenas. Pedras. Paus. Choro de clemência. Carrinho de mão. Ao fim, aquilo que se anunciava tomou corpo. Um corpo. O corpo Dandara. 

Esse que, sendo corpo social, é também Raissa Eloá, Lorena Vicente, Michele Almeida, Kareen Victória, e Nicolly, e Soraya, e Ana… E tantos corpos mais. Destes que, desvalidos, por isso mesmo “validam” nossa cotidiana violência. Estrutura mor que, em si, pretende aglutinar, inclusive sob tresloucados vociferares de pretensas deidades e requintes do cruel, todas as vivências. Nas mãos de moral legisladora, o sangue (quando não os corpos em contextos que não se pode pôr à vista) dessas mãos trans outras – no máximo, servis o suficiente para fazer nossas unhas, cabelos e algumas coisas mais. Educá-las para quê? 

São as vidas bueris, a que se referiu Schefer (2015). Sôfregas e violentadas pela Pedagogia do Destino, ao tom de sina, se constroem às sombras da pior carência e privação: aquela em busca incessante de reconhecimento por humanidade, como apontaria Bourdieu (2011). Desumanizar, bestializar para tornar abjeto e matar, inclusive em vida. Nada que historicamente não tenhamos tão bem aprendido. 

Mas, história é também refeitura, resistência, é atuação de quem ousadamente a faz sob as condições não escolhidas, nas vicissitudes dos dramas que conformam sujeitos concretos, diria Marx (2011). E, assim, mesmo em luto, ainda lutamos e, nos lutos, tentamos agarrar os “cadins” de vida toda. Inclusive daquelas que, não sendo tantas vezes vistas, ressoam a vivacidade-combate. Avançam, anunciam a denúncia e apontam para a necessária inscrição de suas histórias no que entendemos como democracia, educação, universalização, EJA.  

São essas vidas que à EJA adentrando, nos bancos ainda significativamente escassos, demonstram os efeitos práticos de uma LGBTQIA+Fobia que, também institucionalmente, incidiu em seus trajetos educacionais. E continuam a incidir. “Sorte” algumas poderem ultrapassar os 35 anos para isso dizer… 

Mas lá, (r)existindo, estão e sinalizam: para as nossas histórias, cabe agora apenas a EJA, mas temos nós nela cabido? Quantas sobreviventes mais precisarão, anos à frente, na EJA estar para denunciar o mesmo? E será aqui espaço de escuta? 

Quem de nós pode dizer que sim? Quantos podemos, em consciência lúcida, apontar o espaço de formação de EJA, escolar e para além deste, como lócus efetivamente diverso, estratégico e democrático que, robustamente, tem avançado no sentido de combater os papéis sexuais a que estamos “naturalizados”? Quantos podemos dizer de contumazes rupturas com as hierarquias normatizantes que enredam mortes e exclusões? Naturalizados, naturalizamos ainda mortes… São ainda cenários de educação que bailam ao som estertor.    

Paiva (2009) já sinalizava a necessidade de se redizer o direito à educação dos jovens e adultos. Parece que alguns jovens e adultos têm de redizer muitas vezes mais e mais e mais… Para nós, fica a compreensão da justa ira, da amorosidade, da necessidade de posicionar-se frente ao “novo” que tão velho é. Fica a aposta de tessituras que rejeitem qualquer tipo de discriminação, como aponta Freire (2009). E, entendamos, há muito por ser ainda feito… Se possível, pesquise os nomes (não de autores badalados) aqui citados…

Lembro-me do aluno que, há anos, tive na rede pública de Belo Horizonte. Lembro-me, horrorizado, de sabê-lo não mais vivo e sob a crueldade não inédita. O carrinho continua a rodar…

 

* O título deste texto se dá em referência/intertextualidade à passagem descrita no texto “Seriam os sujeitos da EJA passíveis de luto?”, de Nilma Coelho. Os dizeres (muito oportunos) da autora podem ser acessados aqui.

 

1Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas da Universidade do Estado de Minas Gerais – DECH/UEMG-Ibirité. Professor do Instituto DH – Pesquisa, Promoção e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania.

 

Para saber mais:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. SP: Paz e Terra, 2009.

MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. 

PAIVA, Jane. Os sentidos do direito à educação para jovens e adultos. Rio de Janeiro: DP et Alii, 2009.

SCHEFER, M. C. Pedagogia do Destino: um estudo etnográfico. 1. ed. Curitiba: CRV, 2017.


Imagem de destaque: Gisela Merkuur / Pixabay 

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