Conflitos no Brasil: memória e esquecimento

145Em meio à grave crise política e econômica pela qual passa o país, e cujos desdobramentos é impossível antever, é muito salutar que a CAPES, órgão ligado ao Ministério da Educação, publique um edital com o objetivo de selecionar e apoiar projetos que tomem como objeto de pesquisa os conflitos no Brasil. 

Os momentos de crise são particularmente férteis para a explicitação das posições antagônicas e dos conflitos entre os grupos que defendem projetos diversos para o Brasil. E isto é visível nos últimos anos no país! Mas, evidentemente, tais conflitos não existem apenas em nosso presente e muito menos estão fundamentalmente ancorados numa pretensa onda moralizadora de combate à corrupção.

Em um país como o nosso, que teima em silenciar ou camuflar os conflitos, é fundamental a ação pública, estatal ou não, para dar visibilidade aos mesmos. Trazê-los para a luz pública, buscar entendê-los, procurando elaborá-los individual e coletivamente é a única forma de mobilizá-los construtivamente. Isto porque, ao contrário do que defende normalmente o pensamento autoritário, quanto mais democrático é o espaço social, mais conflituoso é o mesmo. Neste sentido, o silenciamento dos conflitos é, em última instância, um convite e um elogio à violência.

É também muito importante que o mesmo edital articule a questão do conflito com a memória. Da mesma forma que o silenciamento, o esquecimento dos conflitos é um péssimo conselheiro para a vida democrática. Contrariando o senso comum que, muitas vezes, reclama de nossa falta de memória, há que se perguntar quais são, na verdade, as memórias e as histórias continuamente atualizadas e mobilizadas na construção de sentidos e de projetos para o país.

Há várias evidencias de que, no Brasil, sobretudo nos momentos de tensão social, as histórias e as memórias mobilizadas são aquelas que nos remetem aos nossos heróis, sujeitos individuais ou coletivos que providencialmente nos salvaram de algum perigo ou de algum desastre. São também memórias e histórias que nos remetem à pátria do consenso, à ausência de rupturas violentas e de congraçamento entre raças, classes, nacionalidades etc.

Essas histórias e memórias continuamente mobilizadas por variados grupos acabam por encobrir as mais diversas formas de violência subjacente à construção dos consensos forçados, das mudanças impetradas de cima para baixo e à construção de uma cultura política que prima pelo elogio ao privilégio. Ao encobrir e ou expurgar a violência que preside as relações sociais no Brasil, ao demonizar os conflitos inerentes a vida pública democrática e ao lançar mão dos heróis salvadores estamos, na verdade, fazendo um elogio aos regimes de exceção.

Quanto mais entendermos os conflitos, quanto mais os estudarmos, quanto mais criarmos canais legais e institucionais para que os mesmos se estabeleçam no espaço público democrático, mais estaremos fazendo para defender e fortalecer a democracia. E essa pode ser uma das mais importantes contribuições da pesquisa acadêmica ao país.

Há que se lamentar, no entanto, que o edital da CAPES se proponha a financiar apenas projetos com o objetivo de estudar “processos e episódios (revoltas, insurreições, rebeliões populares, lutas armadas, manifestações populares entre outros)” que tenham se estabelecido no período republicano. Não há motivo algum que justifique o esquecimento dos “processos e episódios” que ocorreram antes da República e que foram, e são, fundamentais para a elaboração de sentidos para nossa história e para nosso país. Não custa lembrar que, com esse privilegiamento da historia republicana, os elaboradores do edital acabaram por jogar na sombra todos os “processos e episódios” relativos à escravidão no Brasil, por exemplo. E esse esquecimento, inclusive por ser voluntário e oficial, é injustificável e lamentável, e poderia muito bem ser revisto pela direção da instituição.

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