Carta aberta – entre as brumas da saúde imaterial

Ivane Laurete Perotti

Sobre a mesa do professor, um envelope fechado em folha de caderno. Destinatário: Para você. Remetente: em branco. A letra não indiciava o autor. O número de alunos crescia na mesma proporção da precariedade da sala de aula. Quantos estavam ali? Já não lhe cabia certeza. Haveria de conferir assim que possível. E por possível, que se entendesse o limite do tempo entre o viável e o não contabilizado. Tarefas de educador não cessam.

Março findava-se melancólico também para ele, professor. Sentia sobre si um peso que negava admitir. O improvisado envelope indicava-lhe desconforto, pois alguém o instava a uma conversa não solicitada. Cabisbaixo e inseguro quanto ao seu papel, bem preferia dar conta do trabalho e furtar-se da escola. Mas a escola teimava em impregnar-lhe a alma de operário. Não se desgrudava das entranhas gastas.

A manhã passara com o envelope intocado. No ônibus, a caminho de outra escola, pensou duas vezes antes de abrir a missiva. Começava assim:

Professor, eu sou o aluno da terceira fila, perto da janela, aquele que tá sempre meio dormindo kkkk.  Hoje, na sua aula sobre o tempo na história, eu pensei, pela primeira vez, que gostaria de conversar com você. Não sei bem o que eu ia dizer e não sei se você aceitaria, né? Eu gosto de História, mas quase não ouço as explicações. Na maior parte das aulas eu penso em outras coisas, não consigo evitar. Tem um ouriço dentro da minha cabeça que me cutuca sem parar. Você gosta de ouriço? Eu sou um ouriço com espinhos enormes apontados para o infinito. Você falou do tempo e gostei. Me achei no tempo geológico, porque, no tempo histórico, a minha vida é uma merda. Desculpa aí, mas tô me f…  Eu devia ter nascido em outra era. Ou nem ter nascido, kkkkk. Sou muito estranho para ter serventia neste tempo cronológico. Na aula de hoje eu ouvi o que você falou e decidi escrever para deixar uma marca, mesmo que o senhor não se lembre de mim. Não sou da bagunça, né? Não sei se vai lembrar. Mas eu queria dizer que na merda da minha vida você fez diferença: senti vontade de saber mais sobre o tempo e, quem sabe, se eu tivesse tempo, eu fosse estudar para ser alguém. Como nada vai mudar na p… da minha vida, não vou voltar atrás. Eu decidi acabar com essa p… toda e vou até o fim. Não se preocupe. Não quero fazer mal a ninguém. Não sou desses que machucam os outros, mas sinto que os outros me machucam até sem querer. Tem gente boa na escola, manos e tal. Acho uma b… sentir as coisas que sinto sem um minuto de sossego. Por isso eu queria ser um ouriço, entendeu? Não? Eu também não sei bem o porquê, mas sempre me vejo como um daqueles bichos. Até colei a foto de um deles na tela do meu cel. Sô eu… em outra vida, pois esta já deu. Tô caindo fora. Não precisa me procurar nem avisar a minha família. Ninguém tem culpa de nada. A minha vida é uma b… é isso aí!. Imagino que meus pensamentos são os espinhos do ouriço com duas pontas afiadas. Entendeu? Se bem que eu sinto que eles incomodam mais do lado de dentro. Cara, é muita bad! Já fiz umas terapias e tals…os espinhos rasgam a minha paz, meu! Os espinhos tão aqui, dentro e fora de mim. Agora, tô suave! Decidi e ponto. Você sabia que amanhã é a data do meu aniversário? De quinze anos, cara. Pode? Acende uma vela para mim, valeu? Mas não sopra, não! Só faz um pedido: que meus mano não queiram ser ouriços. Não dá certo no final. Fui.

Assinado: seu aluno da terceira fila, o dorminhoco esquisitão.

O almoço no ônibus tornou-se um buraco de minhoca. Por tempo incalculável os espinhos alojaram-se no professor. Ferido e reconhecendo-se naquela voz de incompletudes, o educador procurou pelo celular: avisar a escola, procurar a família, pedir ajuda. Sem sinal. A ferramenta não cortava as distâncias em linhas retas tanto quanto prometia. Sem sinal.

Março já fora embora, mas o ranço parecia alastrar-se para além de abril. Que tormentas ainda desabariam sobre as cabeças protegidas por cones de papel? Um cone. Dois cones. O professor de História do Brasil contava as filas das narrativas silenciosas. Olhos riscados em linhas de caderno abriam-se à frente. O tempo mascarava-se em nome e endereço: como saber a hora de uma conversa? Até onde conversar o conversado? Estaria preparado para desconfiar do inimaginável? Esse era o lugar da escola? Que escola?

Professor? Ei, professor?

–…

Professor! É aula de história!

Sim… claro! É aula de história!

Onde começamos?

Que tal… que tal se começássemos pela sua?

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