Assim cantou a sereia da Vilarinho: baseado em fatos reais

Ivane Laurete Perotti

 

Na sala dos professores, o clima era de apreensão: cansaço de final de ano, questões salariais, motivações pessoais, projetos de escola, entre muitos outros “senões”. Mas eis que ela surge como se adentrasse para o ato central no palco da vida.

–Estou viva!

Óbvio! A professora era, por assim dizer, uma mulher impossível de não ser notada: cabelos longos, andar altivo, olhos verdes, voz imperiosa, ideias seguras. Era competentemente bela. O óbvio de sua fala abria muitas implicações, mas nenhuma delas daria conta do que se deu a seguir:

–Consegui sair do periquito sentindo-me uma vitória-régia.

Construção duvidosa: excesso de metáforas para uma oração tão concisa e não recuperada entre a maioria dos professores presentes, recém-chegados na escola por atos de designação temporária.

Ocorre que “periquito” era o nome carinhoso de um fusca verde, ditosa herança materna da professora exuberante e, então, viva! Sim, viva e molhada! Melhor: enlameada. Folhas e outros fragmentos depreendiam-se de seu cabelo. Partículas irreconhecíveis misturavam-se à lama que cobria o corpo esguio. Ela estava absolutamente irreconhecível e cheirava a… bem, desnecessária tal descrição.

Dirigia-se a professora à escola quando foi tomada por uma “bomba” d’água pluvial. (Perigo crescente, as águas da chuva em BH desenham um mapa mortal em regiões propensas a inundações.). Na altura da Vilarinho (metonímia proposital), o ”periquito” foi levado pela concentração de águas da chuva, acrescidas de lama e lixo. Não houve tempo para a professora sair do carro, tão rápido cresceu em densidade e força a água sem vazão. Quando o fusca já contava com metade de água dentro dele, uma corrente humana chegou à janela do “periquito” instando-a a sair. Pessoas de mãos dadas, desconhecidas até o momento deste texto, salvaram a professora que trajava um leve e longo vestido de algodão, devidamente abotoado na frente do corpo. Em estado de choque, a profissional da educação viu-se em estado de “vitória-régia”: as fraldas do vestido subiram à altura dos ombros, abrindo-se como a própria flor sobre a superfície da água.

–Por que você não foi para a sua casa?

Não terminou a pergunta aquele professor. Todos os olhos da sala voltaram-se para ele incrédulos: voltar para casa? Ela estava viva! Como justificaria uma falta à escola? O pobre rapaz, recém-designado, desconhecia os imbróglios para justificar uma não-presença. Melhor carregar a lama para a escola do que deixar a lama afastá-la dela. Metáforas à parte, aquela era uma situação de sobrevivência, e já não mais se falava da água da chuva, mas sim do periquito.

 

–Pois, ele está lá. Um poste barrou o pobrezinho.

Extenuada e suja, a professora contou todos os detalhes do ocorrido antes de ser convidada a lavar-se, trocar de roupa e gastar alguns litros de álcool na higienização geral. Médico!? Não! Mecânico! Ela tinha certeza de que o periquito precisaria de reparos; isso se, alguém de sua família conseguisse chegar ao local antes de o pobrezinho ser depenado. Isso mesmo: de-pe-na-do!, no paralelismo das idiossincrasias da Língua Portuguesa do Brasil. Muito apropriadas, diga-se para não perder a deixa.

Esta parece ser uma história qualquer, em qualquer dia de chuva na Belo Horizonte, antiga Cidade de Minas, lá por 1897. Pois, em dois séculos aumentaram as chuvas e os professores. Contudo, a cidade planejada não contava com o crescimento acelerado e perdeu-se nas corruptelas de um grande descuido.

O depoimento da professora, carinhosamente apelidada de Sereia da Vilarinho, pela tentativa de amenizar o sofrimento passado e o medo contínuo, não subestima nem esquece a dor dos que não sobreviveram, no mesmo dia, em outros lugares da cidade mineira.

Assim cresce BH, a capital onde as inundações ou cheias aumentam na mesma proporção das perdas por ausência de um projeto validado na segurança de sua população. Que cidade nós queremos?

Um cântico às anônimas mãos humanas que sobrevivem às chuvas em correntes de bondade: salvam vidas, choram perdas e permanecem entrelaçadas.


Imagem de destaque: @pawel_czerwinski

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