Arte, Verdade, Crime e Ceticismo Político

Rafael Muller ¹

A relação entre a arte e a verdade perpassa, num enquadramento escolar, três principais correntes: a) o didatismo, em que a arte ensina uma verdade exterior; b) o romantismo, em que a arte é verdade subjetiva em si mesma; c) o classicismo, em que a arte é mimética de uma verdade exterior (BADIOU, 2002). Basicamente, as três concepções dizem de uma função para a arte: a) a arte como meio pedagógico para ensinar algo que DEVE ser aprendido, no didatismo; b) a arte pela arte, no romantismo; c) a arte como meio alternativo de conhecer a verdade, algo que PODE ser aprendido através dela.

Essas “escolas” dizem da relação entre arte e verdade e, apesar das eventuais coincidências de nomes utilizados, não se tratam das escolas de estilos de escritura mais usualmente conhecidas. Como posto, referem-se à função da arte. Todas as três, entretanto, estão estafadas. E por um motivo, em minha visão, bastante simples: a verdade está estafada. Em nenhuma das concepções, a própria noção de verdade é posta em xeque. Em todas elas, a verdade existe: exterior-objetiva a ser apreendida (no didatismo), interior-subjetiva (no romantismo), ou exterior-objetiva a ser mimetizada (no classicismo). 

Somos ensinados, através das ciências, das artes, dos costumes, que a verdade existe enquanto tal. Que ela é possível. Veja-se a hegemonia platônica e seu mito da caverna. Em todo caso, com efeito, a arte – por mais imperfeita que a quisesse Platão – serviu-lhe, dessa forma, como uma extensão racional e um objeto da ciência, perdendo aquilo que lhe é essencial. A arte deve ensinar a não verdade. Não se trata de “não verdade” enquanto mero ficcionismo, mas problematizar nossas próprias noções de verdade. Toda arte precisa ser anárquica: não em seu aspecto didático (em que proporia o anarquismo como verdade), mas em seu aspecto anti-enquadramentos, sua versão negativa (do anarquismo enquanto filosofia política cética contrária à verdade absolutista). 

Dostoiévski postula a anti-verdade e o faz muito bem em Crime e Castigo. Porfíri, personagem coadjuvante que inquiri a Raskólhnikov, sintetiza a lógica de Rodka (DOSTOIEVSKI, 2009):

“O quid está em que no seu artigo o senhor divide os homens em ordinários e extraordinários. Os homens vulgares deviam viver na obediência e não têm direito a infringir as leis, pelo próprio fato de serem vulgares. Mas os extraordinários têm direito a cometer toda a espécie de crimes e a infringir as leis de todas as maneiras, pelo próprio fato de serem extraordinários. Se não estou enganado, parece-me que era isso o que o senhor dizia.”

Veja-se: dogmaticamente está postulada a verdade da diferença entre homens ordinários e extraordinários, tal qual os dualismos entre arte e sensibilidade imperfeitas e a racionalidade platônica perfeita. Entretanto, a concepção que separa, em natureza, crença e realidade ela mesmo não existe. Trata-se de um evento comportamental: mais especificamente, de fé. É no que Raskólhnikov insiste (DOSTOIEVSKI, 2009):

“Eu me limitava simplesmente a insinuar que os indivíduos extraordinários tinham direito (claro que não um direito oficial) a autorizar a sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos, e unicamente nos casos em que a execução do seu desígnio (às vezes salvador, talvez, para a humanidade) assim o exigisse.”

Na ficção, que invade o âmago da psiquê de Rodka, a anti-verdade parece legítima-legitimadora do crime cometido. Ora: como saber-se extraordinário sem cometer um crime? A superioridade ou inferioridade dos homens estaria em seus comportamentos, e não em sua natureza ontológica. É, pois, uma contradição em seus próprios termos.

Essa anti-verdade, talvez tão palpável em Crime e Castigo, não o é em nossa leitura da realidade. Enquanto o mundo ficcional divide-se em homens “ordinários e extraordinários”, o mundo real divide-se em “cidadãos e inimigos”. O critério, é o mesmo: a subversão ou não da ordem social (SANTOS, [s.d.]). A diferença – e daí a anti-verdade – é que no romance de Dostoiévski a subversão é louvada – são homens extraordinários, que agem pelo bem da humanidade. A verdade, entretanto, permanece: cidadãos, amigos, ordinários, são aqueles que sucumbem dia após dia na fervorosa atenção à ilegalidade das leis. Sem revolta. Sem desordem.

É o direito desigual: favorável àqueles que contribuem para a manutenção do status quo, que não ferem as expectativas sociais da burguesia – que se autointitula “sociedade civil”, numa tentativa de globalizar-se. A arte, portanto, não DEVE ser didática, mas DEVE ser cética politicamente – anárquica -, duvidando de todo dogmatismo imposto.

 

1Rafael Muller é Licenciado em Letras-Português; Analista de Sistemas; Especialista em Ciência Política; Especialista em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local; e Doutorando em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa. Como pesquisador e ex-integrante do Serviço de Inteligência, interessa-se especialmente por Literatura Russa, Anarquismo, Ceticismo, Niilismo, Serviços de Inteligência e Criminologia. Fã incondicional do Behemoth de Bulgákov. E-mail: rgmuller@yahoo.com

 

Para saber mais: 

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. 

DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e castigo. São Paulo (SP): Editora 34, 2009. 

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. [s. d.]. Acesso em: 16 fev. 2021. 


Imagem de destaque: Freepik / kstudio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *