Ciência(s) e mal-estar nas Humanidades

Alexandre Fernandez Vaz

As Humanidades estão no corner do ringue da Universidade e do sistema de ciência e tecnologia. São questionadas, por um lado, porque apresentariam um déficit de cientificidade; por outro, porque sua eficácia em relação ao “mundo real” seria, para dizer o mínimo, limitada. O pouco prestígio de que tradicionalmente gozam junto aos órgãos de fomento à pesquisa (não apenas no Brasil) é sintomático e o caso do programa Ciência sem Fronteiras não é isolado. Observe-se, aliás, que a Ciência do programa é escrita no singular. 

Com frequência atribuímos a responsabilidade por tal quadro à incompreensão daqueles que estão em posições de poder no sistema de ciência e tecnologia. Não conseguiriam entender a natureza e o modus operandi da produção de conhecimento em Humanidades, mostrando-se incapazes até mesmo de pensar sobre suas próprias pesquisas. Muito mais bem financiados, teriam facilidades que para nós seriam escassas ou até mesmo ausentes. Acostumados a ser “reprodutores” de conhecimento, preocupados em produzir um paper atrás do outro, seriam pouco reflexivos. A levar a sério a afirmação de um estagiário de pós-doutorado em Educação, fazer uma tese em Agronomia ou Engenharia é fácil porque lá se trata de nada mais do que descrever como uma planta cresce ou como se faz uma solda.

 Há algo de correto nas críticas que os pesquisadores de Humanidades fazem aos colegas de Ciências Naturais e Tecnológicas, para além da vulgaridade de classificar a todos como “positivistas”. Mas seria o caso se pensar também, sem tanto ressentimento, no papel que as pesquisas em Ciências Humanas, Letras, Filosofia e afins, têm desempenhado. Da mesma forma, não estaria mal avaliarmos como temos nos relacionado com as Ciências chamadas de “duras”.

Há poucos anos, Otávio Frias Filho[1] falava de dois fortes golpes que as Humanidades sofreram nos últimos anos. Um deles teria sido a queda do Socialismo Real, outro, o enorme avanço das Neurociências. No primeiro caso, cujo marco é a derrubada do muro que separava a cidade de Berlim, em 1989, o poder de previsão sobre uma pretensa regularidade histórica ficaria desativado, pegando de surpresa boa parte do esforço acadêmico aferrado à vulgata das leis históricas. Não é para menos, já que o muro e tudo o que o cercava despencou, como escreveu Eric Hobsbawm, como um “castelo de cartas”. No segundo caso, o golpe mais duro teria sido desferido em direção à Psicologia, abatida pelos novos conhecimentos sobre o sistema nervoso e seu funcionamento, além da eficácia superior das correspondentes técnicas de tratamento do sofrimento psíquico.

As ponderações de Frias Filho não deixam de ter razão, como alerta e algo mais, e suponho que a defesa encarniçada e repetitiva de posições fossilizadas não ajuda no processo de legitimação das Humanidades no interior do universo acadêmico, assim como tampouco fora dele.

Não faz sentido escolher as Ciências Naturais e a Tecnológicas como inimigas. Duas questões talvez possam aí ser mais bem observadas. Uma delas é considerar, sem traumas, e sem prejuízo à crítica à sua ordenação capitalista, que o financiamento às pesquisas que tratam da vida vivente não pode ser baixo em um mundo que apenas paulatinamente vai deixando de ser hostil à presença humana. Sem vacinas e energia elétrica, não haveria tampouco sobrevivência das Humanidades. A segunda questão refere-se ao nosso diálogo com as Ciências Naturais e Tecnológicas.

Em junho de 2010 o cineasta João Moreira Salles, autor de documentários essenciais como Notícias de uma guerra particular (com Kátia Lund) e Santiago, publicou um polêmico ensaio na Ilustríssima, suplemento cultural do jornal Folha de São Paulo. Oriundo de uma conferência de Salles – que também atua como jornalista e professor universitário – proferida na Academia Brasileira de Ciências, o texto critica duramente o descaso que as Humanidades destinam às ciências. O entendimento é de que as Humanidades estariam ao lado mas sem partilhar da condição de ciência, o que pode evidentemente ser questionado, pelo menos por algumas de suas áreas de conhecimento. Mas isso não é o mais importante aqui. Salles não refresca: “A valorização das ciências [representantes das Humanidades, a.f.v.] entre nós é pífia. Sempre me espanto com a presença cada vez maior de projetos sociais que levam dança, música, teatro e cinema a lugares onde falta quase tudo. (…) Nenhuma objeção, mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios. Ninguém pensa em levar a esses jovens um telescópio ou um laboratório de química ou biologia?”

Se Salles tem razão, e parece-me que tem, e à luz do que eu argumentava acima, chegamos a uma situação inusitada cuja expressão, mesmo que de forma simplificada, pode ser dizer alguma coisa: as Humanidades têm prestígio entre os seus, gozando de baixa reputação junto ao grosso da Universidade e do sistema de ciência e tecnologia. As Ciências Naturais e Tecnológicas, por sua vez, alcançariam apenas os escalões inferiores de nossa estima, mantendo-se, ao mesmo tempo, distantes do universo simbólico da maior parte da população, em especial a do “andar de baixo”, para usar a feliz expressão de Elio Gapari.

O assunto merece mais discussão, mas, no momento, limito-me a afirmar que deveríamos valorizar mais as Ciências Naturais e Tecnológicas, mantendo a crítica imanente a ela e sem deixar de lado o que nos caracteriza, como é o caso da renúncia à obrigatoriedade de que uma pesquisa seja “útil” para que deva ser apoiada. Um pouco mais de apego à Ciência e à sua tradição nos distanciaria do esoterismo, das hipóteses fantásticas, da arbitrariedade do monopólio da impressão e do sentimento, todos frequentadores assíduos dos cursos de Humanidades, em especial os de formação de professores. Nossas pesquisas igualmente ganhariam com isso. Um tanto mais de desencantamento do mundo não nos faria mal.

[1] FARIAS FILHO, O. Seleção natural: ensaios de cultura e política. São Paulo: Publifolha, 2009. 218 p.

 

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