A Sonata a Kreutzer, Tolstói e a Criminologia Crítica

Rafael Muller

A Sonata a Kreutzer, de Lev Tolstói, é um texto que narra a história de Pozdnychev, um sujeito que assassinara sua esposa após anos conturbados de uma relação conjugal turbulenta. SEm seu conteúdo é um prato cheio para debates em torno da instituição do casamento, amor livre, etc. Apesar disso, em sua forma, o autor larga um ensinamento importante, que pode passar despercebido: o fato de como nossa sociedade se estrutura para julgar aàs pessoas pelas ações que tomamos em decorrência das imposições conjunturais.

No enredo, a instituição do casamento enquanto validação do “amor verdadeiro” é uma imposição que resulta na conjunção de pessoas com ideais diferentes, decorrente do “amor sensual”, situação substancialmente diferente do “idêntico estado de alma”, para o qual não se justificaria a partilha do leito. Os desentendimentos, a violência e os comportamentos e fatos que se seguem são todas decorrências da violência da imposição cultural do casamento através da educação. Por tudo isso, Pozdnychev será julgado.

A solução dada pelo protagonista para o problema passaria pelo “amor livre”, um estado transitório que congrega um discurso de desprezo à instituição autoritária do casamento, a qual não passaria de hipocrisia, violência e deboche. O mesmo valeria para a escravidão, que é a “exploração do trabalho de uns para regalo dos outros. Para abolir a escravatura é preciso acabar com essa exploração, estigmatizando-a como um pecado e uma vergonha. Julgaram aboli-la, impedindo a venda de escravos, e, contudo, ela continua subsistindo. Porquê? Porque a exploração se nos afigura uma coisa perfeitamente justa e razoável. E desde que esta opinião é aceita, fácil é encontrar homens mais fortes e mais manhosos que não hesitem em explorar os outros” (TOLSTÓI, 2010).

Mirando-se o crime cometido, a história denuncia a estética da educação atual: o crime comum perpetrado pelos explorados é julgado e condenável, mas a instituição causadora não é posta em cena. O texto literário de Tolstói traz o problema à baila: apesar do assassinato (crime comum) perpetrado pelo marido (explorado), o casamento é posto em debate.

Na vida comum, precisamos falar dos crimes comuns (furtos, roubos, falsificação, pirataria, transporte clandestino) cometidos pela parcela mais explorada da população (negros e pobres) sem esconder a instituição verdadeiramente causadora do problema: o modelo econômico errado que aprofunda as desigualdades sociais e cria contextos de extrema vulnerabilidade. Doutro lado, os crimes de “colarinho branco”, aprofundadores desse contexto ignóbil, são considerados de menor brutalidade, perdoáveis, e defensáveis por caros advogados, enquanto a defensoria pública sofre abarrotada e sob a crítica da ineficiência. Isso quando tais crimes sequer são considerados como tais, e não meras infrações ou “falhas de gestão”.

Apesar da obviedade da necessidade de conversarmos sobre abolicionismo penal, caminhamos no sentido contrário. Trata-se de um tabu sobre o qual não se pode sequer versar. Há, entretanto, espaços em que o debate é menos constrangedor: Brasília e a região do entorno (Goiás) vivem um drama que nos serve de exemplo. Nos transportes coletivos interestaduais (ônibus de longa distância), cuja política regulatória de fato poderia ajudar a reduzir as desigualdades territoriais e o inchamento das cidades, o Estado (Agência Nacional de Transportes Terrestres) prefere apreender automóveis de passeio em trechos pequenos (entre DF-GO) a combater a exploração econômica do mercado de longa distância por grandes empresas clandestinas oportunistas. Os “colarinhos brancos” do setor se travestem de “empresas de tecnologia” e usam ônibus em nome de terceiros para explorar apenas os mercados lucrativos (como São Paulo – Rio de Janeiro) e desatender os rincões do país (linhas do norte-nordeste brasileiro), burlando o sistema de subsídio cruzado que a política regulatória prevê para reduzir as desigualdades regionais (parte das receitas dos mercados lucrativos, em vez de virar lucro empresarial, deve cobrir os custos operacionais dos mercados não-lucrativos, para atender a todas as populações).

Louvamos os exploradores na expectativa de tornarmo-nos um dia, nós mesmos, “mais fortes e manhosos” e explorar os outros. Queremos o lucro dos monopolistas e banqueiros na vã expectativa de sermos um dia monopolistas e banqueiros? Até quando?

“O capitalismo se reinventa”: ou seria a escravatura? 

 

Para saber mais.

COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: políticas da ordem e o universo militar nas Minas setecentistas. 2004. 307 f. Doutorado em História – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2004.

TOLSTÓI, Lev. A Sonata a Kreutzer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.


Imagem de destaque: Abhi Sharma – Alterações: Recorte

 

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