A solidariedade como objeto pedagógico

Rafael Muller

Augusto dos Anjos, na poesia, é usualmente rememorado por seu cientificismo. Pouco se explora o caráter político, social e crítico de sua literatura, oportunidade em que vai dizer, por exemplo: “Na existência social, possuo uma arma | […] | A solidariedade subjetiva | De todas as espécies sofredoras” (ANJOS, 2002, p. 9). 

Tendo no autor um potencial objeto literário e pedagógico para o currículo, questiono: “Sim ou não: terão a política e a solidariedade espaço na escola?”

Pode o leitor comum ou acadêmico de bom coração, mas pouca vivência pedagógica, temerário quanto à “doutrinação político-partidária” nas escolas, imaginar que a questão proposta está truncada. “Ora”, diriam, “não é possível responder absolutamente que sim ou que não… Afinal, a solidariedade deve ser ensinada desde cedo, mas política não é coisa para a escola”.

Entretanto, quem diz não ter ideologia e “faz fé de apolítico [serve] à política do poder” (TRAGTENBERG, 2012, p. 204). E o que é a “política do poder” senão a própria tirania (a imposição dos valores dominantes a todas as classes)? A política ocorre entre os homens e se expressa na diversidade/pluralidade. Sua função é organizar a convivência: encontrar semelhanças suficientes entre indivíduos diferentes para unir e diferenças suficientes entre indivíduos semelhantes para tolerar (ARENDT, 2017).

Normalmente, a defesa de uma situação apolítica por aqueles desconhecedores do tema se baseia no louvor à junção de iguais, uma parcela bastante seletiva da política: a busca de semelhanças para agregar. Esquecem-se, frequentemente, de seu segundo elemento essencial: a valorização de diferenças o suficiente para o exercício da tolerância. 

Veja-se: constatar diferenças entre as gentes não é suficiente para o exercício da política. É preciso que as diferenças sejam tais que demandem o exercício da tolerância. Nesse limite está a política e nesse limite estão as bases da verdadeira solidariedade. 

Política e solidariedade são palavras, portanto, não apenas importantemente imbricadas, mas suficientemente sinônimas. Não politizar a sala de aula é valorizar a individualidade egoísta. Do outro lado do individualismo, está a luta por união das classes subalternizadas (seja por qual for a sua seccionalidade de subalternização), uma outra contra-estratégia ela mesmo perversa. Ela incorre no mesmo erro de ação política parcial: baseia-se naquilo que há de igual entre todos (o sofrimento e a opressão), mas deixa de enfocar as diferenças o suficiente para o exercício da tolerância. 

Podemos clamar, talvez, por respeito e ação conjunta e coordenada contra um sistema opressor, intolerável, mas nunca atingiremos um modelo de união estável e idealizada (que só se realiza através da padronização dos indivíduos). Quando descobrirmos o segredo da tolerância daquilo que nos é intolerável no outro indivíduo, teremos o jogo virado. Em resumo, é preciso aprender a tolerar o outro individual – ato de solidariedade – sem extrapolá-lo para uma tolerância com o sistema opressor supra-individual – ato de paralisia e aceitação perante o sistema.

Tragtenberg (2012, p. 18) ainda dirá: “A valorização da ‘criatividade’ e da ‘espontaneidade’, tão comum na mixórdia pedagogística que constitui o grosso da literatura e que entope as estantes de livrarias, nada mais é do que a legitimação de uma desigualdade social estrutural básica”. Esses valores substituem, de modo velado e aparentemente legítimo, a solidariedade pela individualidade: afinal, serão mais criativos e espontâneos aqueles com as condições sociais (alimentação, higiene, acesso a direitos, etc.) que lhe permitam expressar outra coisa que não a necessidade de sobreviver.

Em prol de uma sociedade realmente coletivista, deve ser ensinada a solidariedade profunda: a tolerância e o convívio. Tolerar e conviver é estar em contato, e isso só é possível quando outras barreiras que separam realidades foram quebradas. Por isso mesmo, não se pode crer que o ensino formal salvará o mundo ele por ele mesmo, tal qual nos é apresentado no sistema atual. Concordo novamente com Tragtenberg (2012, p. 119), por fim, quando ele diz “que a educação pode ser um meio importante de mudança social”, mas desde que “se ao mesmo tempo você fizer mudanças econômicas, políticas e sociais”. 

 

Para saber mais: 


ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Porto Alegre: L&PM, 2002.

ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017.

TRAGTENBERG, Maurício. Educação e burocracia. São Paulo: Editora Unesp, 2012.


Imagem de Destaque: Pixabay

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