A secular urgência de uma Educação das Relações Étnico-raciais

Ana Luiza Jesus da Costa

Passados dez anos da Resolução nº 1 de 17 de junho de 2014 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, podemos comemorar importantes avanços no campo da legislação educacional antirracista. Lembramos, aqui, de alguns dispositivos dos quais o Estado vem lançando mão em sua tarefa de induzir práticas que promovam a igualdade racial tais como: a Lei 10.639/2003 que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, atualizada pela Lei 11.645/2008 que acrescenta a história e cultura indígena; a Lei de cotas para acesso da população afrodescendente ao ensino superior, as próprias diretrizes curriculares citadas a cima.

Em um país como o nosso, onde o racismo é considerado estrutural e define os destinos de milhares de brasileiros, contando que, segundo os dados do IBGE, quarenta e cinco por cento da população brasileira é negra, não precisamos fazer muito esforço para argumentar que a legislação e as ações indutoras do Estado nas últimas década não se configuram como dádivas do poder público aos afrodescendentes. Cada uma delas foi fruto de lutas e do processo de organização dos movimentos sociais, no caso, em especial, do Movimento Negro, considerado pela cientista social Nilma Lino Gomes como um agente educador da sociedade e do Estado.

Ao mesmo tempo que temos motivos para celebrar conquistas como: ampliação do acesso de negros e negras às universidades; se não a plena adoção do ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas, ao menos um aumento da mobilização em torno dessa demanda; basta abrirmos o jornal, ligarmos a TV, acessarmos as redes sociais para encontrar diversas e diárias evidências violentas de permanência do racismo. Há algumas semanas, um caso chamou atenção nacional: as ofensas proferidas por torcedores do Grêmio ao goleiro Aranha do Santos. Não é de hoje que os campos e arquibancadas de futebol são terrenos férteis para a destilação de preconceitos étnico-raciais. Entretanto, desta vez, o goleiro não “engoliu essa bola” e as câmeras no estádio registraram o crime de injúria racial. A repercussão foi grande, gerou muita polêmica, inclusive com Pelé, o Rei do futebol, que se revelou bom súdito das estruturas sociais desiguais, ao criticar a postura de denúncia adotada por Aranha. Podemos dizer que, em geral, os xingamentos receberam o repúdio da opinião pública, e a sentença da justiça foi favorável ao ideal de igualdade racial. Por outro lado, visitando o portal de notícias da Rede Globo (G1), nos deparamos com uma cobertura “sutilmente” conservadora da imprensa. Em matéria que traz na manchete o destaque a um torcedor negro do Grêmio que “também xingou”, deixando subliminarmente a velha mensagem dos “negros que tem preconceito com os próprios negros” (como se isso isentasse o preconceito dos brancos) encontramos o didático item “entenda o caso”. Neste, sob a aparência de uma narrativa imparcial dos acontecimentos, o texto menciona rapidamente o fato de que o juiz da partida, avisado dos incidentes, teria deixado o jogo seguir como se nada tivesse acontecido e dedica todas as linhas restantes a tratar das punições à torcedora do Grêmio, seu arrependimento não aceito pelo goleiro Aranha, os transtornos causados à moça que perdeu o emprego e teve sua casa apedrejada, além das sanções sofridas pelo próprio Grêmio.

A proporção tomada pelo caso e o repúdio demonstrado contra a atitude da torcedora é sinal de amadurecimento de nossa sociedade. Entretanto, não podemos esquecer o sem número de injúrias raciais encobertas, silenciadas. Injúrias que os(as) jovens negros(as), principalmente os moradores de periferia, sofrem cotidianamente por parte da polícia; do sistema judiciário e prisional (basta observar que a maior parte da população carcerária é negra); do mercado de trabalho (basta lembrar a segregação relacionada à “boa aparência” que não é mais declarada, porém ainda praticada); do mercado de consumo (basta lembrar a polêmica em torno dos “rolezinhos” nos shoppings paulistas praticados por jovens de periferia, majoritariamente negros); da mídia (há bem pouco tempo quase não havia negros na TV, exceto em papeis de trabalhadores subalternizados ou em novelas de época sobre escravidão; e ainda hoje, estes sujeitos, especialmente as mulheres negras, aparecem estereotipadas, como é o caso de “Sexo e as Negas”, programa da Rede Globo). E, muito infelizmente, homens e mulheres negras em nosso país, ainda sofrem injúria por parte do sistema educacional. Basta observar os índices de analfabetismo comparativamente maiores entre negros que brancos, bem como o menor grau de escolaridade atingido e o menor acesso ao ensino superior por parte dos negros.

Pensar a educação é pensar muito além da escola, mas acreditamos que esta instituição, em nossa época, é um poderoso e influente instrumento de socialização, difusão de conhecimento e de convencimento ideológico. Nesse sentido, ela pode ser usada para reproduzir o racismo estrutural que temos em nossa sociedade, ou, por outro lado, pode ser uma ferramenta usada para miná-lo em suas bases. Não por acaso, os movimentos de homens e mulheres negras, desde o pós-abolição, conferiram importância estratégica à educação e particularmente à escola.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana apontam o papel da escola na formação e transformação social a medida que ela pode proporcionar “acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários” (BARSIL, 2004). O mesmo documento, entretanto, lembra que, tão essencial quanto a produção e difusão de informação sobre a História e Cultura Afro-brasileira e Africana é a sensibilização de educadoras e educadores, tanto na gestão dos sistema educacional quanto no dia a dia de trabalho direto com os estudantes para a importância e a necessidade de tais conhecimentos e práticas. É direito dos estudantes negros e indígenas terem professores capazes de lidar com as relações étnico raciais. As Diretrizes Curriculares demonstram a importância de associar a competência técnica no ensino/aprendizagem de cada área do conhecimento à sensibilidade e preparo para lidar positivamente com as questões relacionadas à diversidade étnico-racial. Nesse sentido, “temos pedagogias de combate ao racismo e a discriminações por criar” e essa não é uma tarefa só de negros e indígenas.

Permito-me, por fim, transcrever mais trecho das Diretrizes, não tanto para reforçar meus argumentos e muito mais para divulgá-las. “Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente. Como bem salientou Frantz Fanon, os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos” (BRASIL, 2004). E ainda que as leis aqui celebradas não mudem por decreto a realidade do racismo estrutural no Brasil é muito melhor tê-las para nos apoiarmos.

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