A propósito de um antigo prognóstico

André Luiz Paulilo*

Publicado em 1963, por Maria José Garcia Werebe, o livro Grandezas e misérias do ensino brasileiro anunciava alguns dos maiores problemas da expansão escolar que temos hoje. Realizada sem planos, sem diretrizes ou rumo definido foi o resultado de uma política demagógico-eleitoreira que soube se aproveitar das pressões sociais de parcelas cada vez maiores da população. Os méritos do dinamismo que, então, invadiu um sistema antes seletivo e estagnado, a improvisação que caracterizou a multiplicação das escolas era então encarada como uma fase transitória, inevitável na evolução do ensino brasileiro. Em que pese o modo como o regime militar, entre 1964 e 1985, abalroou a fortuna crítica acumulada na primeira metade do século passado, o que se anunciava transitório, mostrou-se persistente.

Meio século depois da publicação do livro de Werebe, a resposta política aos atuais resultados das avaliações e das estatísticas testemunha que os programas e campanhas dos governos federal, estaduais e municipais para a educação ressentem-se de não reverter a improvisação da estrutura escolar quando da universalização da educação fundamental no país. No grande desenvolvimento quantitativo do nosso ensino ainda são imensos os problemas gerais e particulares que os educadores enfrentam. Sem uma fiscalização eficiente, a suplementação que, atualmente, o FUNDEB permite ter acesso consolidou estruturas de gestão dos investimentos tão precárias quanto as políticas de educação dos entes da federação que mais se mostram dependentes desses recursos. Depois de algum otimismo, o Saeb, o ENEM, o PISA, ou mesmo o ENADE indicam a acentuação das desigualdades de aprendizagem. Os instrumentos de avaliação criados no Brasil desde meados dos anos 1990 para identificar, pressionar a correção e mostrar os avanços não faz mais que diagnosticar a impraticabilidade do nosso sistema público de ensino e mostrar uma deterioração da capacidade dos nossos diversos sistemas educacionais de atender os compromissos de enfrentamento das desigualdades e de universalização do acesso com qualidade construídos na legislação desde a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996.

Atualmente, a cultura da avaliação, a estagnação que seus resultados atestam e o debate criado a cada nova edição dos exames nacionais reiteram que a desigualdade social e econômica ainda determina percursos formativos, lembrando-nos das relações entre a escola e a origem de classe. Após décadas de uma renhida luta contra números brutais de analfabetismo e contra um entendimento obtuso dos processos de expansão das oportunidades escolares, os atuais instrumentos de avaliação mostram acirramento das desigualdades em vez de redução. Os motivos aventados para explicar a diferença entre escolas públicas e privadas insistem que infraestrutura, rotatividade de professores e organização familiar repercutem no desempenho dos estudantes. Os diagnósticos publicados na imprensa diária não têm ido muito mais além deles.

Sobretudo, insiste-se que a escola deve compensar as diferenças de oportunidades impostas aos estudantes pelo seu nível de renda. Entretanto, os instrumentos que foram criados para mensurar isso ao longo das últimas duas décadas apenas reiteram as dificuldades que a escola pública tem de fazê-lo.O crescimento das oportunidades dos alunos originários das camadas mais pobres da população que as estatísticas ostentam ainda é compensado por um reforço dos mecanismos de dissimulação da relação entre origem social e os resultados escolares. A desvalorização da docência e do seu preparo, o comportamento burocrático das reformas do ensino ou o trato meramente estatístico dos resultados escolares são expressões dessa espécie de manobra que faz da precariedade de parte do sistema educacional brasileiro a ocasião de perpetuar privilégios na forma de títulos escolares.

Parafraseando Werebe, pode-se mesmo concordar que “feito o balanço atual do nosso ensino, não podemos dizer se nele há mais grandezas ou misérias”. Segundo afirmava, então, “graves são as misérias que ainda entravam o nosso progresso, que impedem o desenvolvimento do país, mas imensas são também as grandezas já conquistadas”. Entretanto, a estrutura que as reformas dos últimos 20 anos impuseram ao ensino público, com políticas casuísticas de mera correção de fluxo, um gerencialismo de conveniência nos repasses de recursos e degradação das condições de exercício da docência em todo país, impede hoje o otimismo de 50 anos atrás: “O dinamismo que caracteriza o Brasil dos nossos dias permite-nos esperar vencer as misérias e aumentar cada vez mais as grandezas, bem como eliminar as distâncias culturais entre os vários brasis, para criarmos um só Brasil”.Ou alguém realmente acredita que uma agenda dominada por representantes de entidades e fundações privadas vinculadas ao setor empresarial e financeiro produzirá outra versão de sociedade?

 

*André Luiz Paulilo é Professor de História da Educação no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.
Contato: paulilo@unicamp.br

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