A outra face da Alface – exclusivo

Iriana Nunes Vezzani

É interessante como as coisas acontecem.  Moro em Curitiba e ao visitar uma amiga em Belo Horizonte, sentei no ônibus e observei que no banco da frente, pendurado e sacodindo bem em frente aos meus olhos, estava “A outra face da Alface”! Um texto sobre a importância de se comer alface. Curiosa com o que mais poderia haver, no verso encontrei o conto “Curral del Rei”. Olhei entorno – pensando que talvez eu apenas tivesse tido a sorte de participar de algum projeto artístico conceitual-, mas para minha surpresa, vários assentos estavam “ocupados”. Leitura e Ciência para todos! Achei genial aproveitar este espaço e este tempo no ônibus para ler e aprender, afinal o acervo intelectivo deve estar em constante construção.

Gravuras com matriz em linóleo. Produção dos Alunos do Curso Olhar Gravura, Curitiba, PR, 2014

Este momento mineiro me fez refletir sobre a minha experiência dentro do projeto Educultura, resultado da união entre as Secretarias Municipais de Educação e Cultura de Curitiba, que promove ações voltadas a todos os profissionais da Rede Municipal de Educação: educadores, pedagogos, dirigentes, secretários e auxiliares de serviços escolares. Cursos de gravura, fotografia, serigrafia, quadrinhos, cerâmica, técnica vocal, violão popular, violão erudito, narração, leitura dramática, teatro de bonecos, dança circular e dança contemporânea.

“A realização de atividades como estudar, pesquisar e ler foi indicada por apenas 9,9% dos entrevistados e frequentar espaços culturais e de lazer, por 7,7% e, por fim, a opção de praticar atividades artísticas foi apontada por 3,6%.”

A mim, coube ministrar o curso de gravura, no qual a proposta era concentrar na sensibilidade de percepção, no conhecimento artístico, na transferência de habilidade, na expressão visual e na avaliação estética. Não apenas ensinar “receitas prontas” de como fazer gravura na sala de aula, afinal, não só de professores é composta a rede da educação, eram pessoas diferentes, cabeças cheias de sonhos e razões, lutando contra a rotina e a monotonia. Optei por chamar o curso de Olhar-Gravura e muitos olhos curiosos se apresentaram para o desafio de olhar e gravar. Olhos que não sabiam se quer o que era gravura, mas dispostos a aprender a olhar. Ao perguntar suas espectativas sobre o curso, ouvi as respostas mais variadas, entre elas, que ao final de um dia todo de trabalho, no terceiro turno, olhar gravura parecia-lhes mais fácil que aprender a dançar, fotografar, tocar violão…

Percebi que sentada ali, na minha frente, estava uma pequena parcela do público que o Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) identificou na sua pesquisa sobre cultura.  Ao ouvir 2.770 pessoas nas cinco regiões do país, chegaram a númerospreocupantes: mais de 92% nunca foi a um museu ou exposição de arte, somente 13% vai ao cinema alguma vez no ano, os livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população e que, embora muitos saiam para dançar, mais de 78% dos entrevistados nunca assistiram a um espetáculo de dança. A falta de tempo foi a justificativa, mas os números apontam que, caso dispusessem de mais, não optariam por atividades culturais. A realização de atividades como estudar, pesquisar e ler foi indicada por apenas 9,9% dos entrevistados e frequentar espaços culturais e de lazer, por 7,7% e, por fim, a opção de praticar atividades artísticas foi apontada por 3,6%.

São números absurdos se considerarmos que o ser humano é essencialmente cultural! O gosto só se forma na convivência com a cultura e a arte, aprender a apreciar, – ou poderia dizer a “olhar”-, é resultado da construção deste conhecimento. É um processo complexo que exige tempo, treino, vontade, estudo, sensibilidade e determinação. A falta da formação de gosto limita a sociedade ao que é oferecido pelo mercado da cultura comercial gerando indivíduos com opiniões restritas e engessadas, que tendem a preconceitos com a sua própria cultura local e também relacionados à diversidades étnicas, religiosas, sexuais, físicas, etc.

O papel desempenhado pela percepção, dentro do processo de olhar-avaliar-compreender, está diretamente ligado à criação. O anatomista norte-americano Stephen Poliak trabalha com a hipótese revolucionária de que o tecido cerebral resultou de uma evolução dos olhos em pequenos organismos aquáticos que viveram há mais de um bilhão de anos atrás. Isso quer dizer que é possível que o olho tenha dado origem ao córtex onde, supõe-se, está a sede da visualidade fazendo com que o olhar usurpe os demais sentidos fazendo-se cânone de todas as percepções.

Eram 20 pessoas, buscando o mais fácil, que aos poucos perceberam que para ver era preciso olhar mais um pouco, tomar certa distância, como se fossem dar impulso para um grande salto. E saltaram! Olhar gravura já não parecia tão simples, para apreciá-la no contexto contemporâneo foi preciso exercitar não só a sensibilidade, mas também o olhar, acompanhar e compreender que por nunca ter se limitado à esfera artística, a gravura incorporou mudanças de forma muito mais rápida e radical que as outras artes, transformando-se em uma linguagem democrática ao transitar com desenvoltura entre a vida real e o mundo artístico.

Cada imagem que produziam em gravura era uma possibilidade de leitura, de aprender, de expressar-se e de comunicar-se pela imagem. A cada impressão, uma reflexão. Afinal o que é a imagem se não um objeto polissêmico? É justamente dentro desta polissemia, que existe um espaço para a formação estética individualizada.

Como artista plástica e pesquisadora da história e historiografia da educação, me preocupo com a o fato da disciplina de arte ainda ter um caráter secundário ou extracurricular, pois é plena de conteúdos específicos e tem potencial para atuar como eixo articulador de outros saberes, dentro e fora da escola, pois a prática cultural e artística potencializa a capacidade criativa e amplia competências. É da maior urgência oferecer possibilidades para o aprendizado das linguagens específicas e para o seu exercício concreto, para que a “falta de tempo” não afaste as pessoas de participar plenamente da vida cultural da comunidade. Afinal, profundidade da experiência humana depende do fato de sermos capazes de variar nossos modos de ver fazendo do olhar, um olhar construtivo, uma possibilidade de descoberta e criação, só assim poderemos ver “As outras faces da Alface”.

 

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