A língua a serviço das desigualdades

Ivane Laurete Perotti

_ Eu queria muito aprender a falar a Língua Portuguesa.

_ Mas… você fala a Língua Portuguesa do Brasil!

_ Não, professora! Eu queria saber falar corretamente. Sinto vergonha de não saber

   falar do jeito certo.

_ Não existe jeito “certo”…  existem variedades na…

_ Nada disso! Existe jeito certo, sim! O que é certo é certo. Eu falo errado e tenho vergonha…

_ Vamos conversar sobre o que se entende por “certo” e por “errado”.

_ Não quero saber de filosofia, professora. Só quero aprender o português.

A aula de Língua Portuguesa do Brasil, em uma turma de 2º ano do ensino médio da Escola Para Jovens e Adultos, EJA, rendeu à professora lembrar que a identidade de um povo começa no sentimento de apropriação de sua língua e a tentar enumerar os dispositivos de coerção que simbolizam a distinção de classes.

_ Professora, até você fala bonito! Eu quero saber falar sem erros, com as palavras certas.

A dor por trás da súplica era a dor do preconceito marcado e alimentado pela intolerância para com as diferenças.

_ A nossa língua não é “uma”. São muitas…

_ Eu só quero aprender a que é correta.  Se existem outras, deixa para lá, professora!

O poder do mito e o terror do não pertencimento linguístico surdamente ligavam os alunos do 2º ano da EJA ao mesmo pedido: aprender a língua “correta”, a língua dos livros didáticos, a língua da escrita.

_ Precisamos pensar que existem várias formas de falar o…

_ Professora, a gente sabe o que está errado. Agora, você precisa ensinar o que está certo. Eu não aguento mais… até a minha filha tem vergonha de mim quando eu abro a boca.

A dor exalava o cheiro do tempo e do exílio, do esvaziamento de vozes, da veemente negação: (…) o tipo mais trágico de preconceito não é aquele que é exercido por uma pessoa em relação a outra, mas o preconceito que uma pessoa exerce sobre si mesma. (BAGNO, 2008, p. 97). E assim foi no decorrer da noite esfumaçada. O desprestígio sobre os regionalismos, sobre as formas espontâneas de falar pesava tanto quanto o desejo de saber dizer como se registra na escrita. Se a língua corre por um leito de rio, abundante e contínuo, aquela era uma das várzeas secas, entre tantas várzeas não cultivadas nas terras deste Brasil. A geografia aceita a diversificação dos relevos…

_ Está mudando de assunto professora? Geografia não tem nada a ver com português. Nada!

_ Entendo que se pensarmos em um grande mapa…

_ Que mapa, que nada! Eu não quero saber de mapas, isso eu posso até copiar. Mas não dá para copiar quem fala bonito. Eu já tentei. Quero aprender a falar igual ao… Sempre assisto o jornal da TV… para tentar aprender.

_ Este jornal é lido… não é…

_ Ah! Não me fala isso, professora! Assim você me quebra! Lido ou falado é tudo a mesma coisa. É b-o-n-i-t-o!

Nem a aula nem a noite terminaram ali. Desenhar mapas linguísticos no relevo sociocultural de aprendentes nativos é uma decisão política em direção ao “aprender a aprender” qual projeto de Brasil se deseja construir. Resta pensar sobre as razões que nos fazem tão prontamente acreditar no desconhecimento da língua mãe.

_ Professora, não coloca as mães no meio dessa história! Fui eu que ensinei a minha filha a falar. E ela sabe falar bem. Então, não estou entendendo!

Pois, a Geografia ainda é uma ciência humana e a Língua Portuguesa do Brasil permanece em solo fértil, pois há enxadas às costas dos trabalhadores da língua materna.

 


Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. 50ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

 

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