A leitura como prática de negação da realidade em época de pós-verdade

Carlos André Martins Lopes 

Sabe-se que a leitura pode ser considerada uma prática de produção de sentidos para os objetos. Sendo assim, ela não se destina a captar aquilo que seria a pura verdade das coisas, “verdade” que seria revelada, posteriormente, por meio de uma linguagem clara, límpida e transparente. Contudo, há que se notar que produzir sentidos não é a mesma coisa que inventá-los. Há de se reconhecer, na interpretação do mundo, a existência de materialidades nas coisas interpretadas. Há nelas algo que se possa chamar de evidências. A leitura, isto é, a prática de produção de sentidos para as coisas, não pode apagar essas evidências. Muito pelo contrário. Os sentidos produzidos devem estar subordinados ao que há de evidente no objeto interpretado. Caso esse procedimento não seja realizado, a interpretação, ou seja, o discurso que produz sentido para aquele objeto, não passa de uma fraude, uma ilegalidade, uma violência praticada ao objeto da interpretação. 

Foucault aborda, no livro “A sociedade punitiva”, um assunto que pode nos fornecer um exemplo de como uma leitura pode ser fantasiosa, desonesta, fraudulenta. Pesquisando os sistemas penais europeus, mais especificamente, o sistema que tinha na prática do suplício a forma de punição dos mais diversos crimes, o pensador francês afirma que os sinais emitidos pelos supliciados eram lidos pelos sujeitos pertencentes ao sistema de julgamento e de punição como indícios de inocência ou de culpa. 

Alguns dos suplícios consistiam em aplicar fogo e enxofre ao corpo do indivíduo, furar a língua, submeter o suspeito ou culpado à roda, entre outros. Os gritos emitidos pelas vítimas eram interpretados conforme sua intensidade. Os gritos intensos, fortes, que demonstrassem extrema dor, seriam sintomas de que Deus o havia abandonado. Se Deus o havia abandonado, isso só podia significar que a vítima era culpada, ‘pois Deus não deixaria, na visão dos juízes, um inocente sofrer’. Se o supliciado não emitisse gritos tão intensos, por outro lado, tal sinal/texto indicava que Deus estava com aquela vítima, protegendo-a, livrando-a da dor. Era um indício de sua inocência. Há muitos motivos para se pensar que jamais houve gente submetida a tamanho sofrimento que não tenha emitido gritos intensos.  

O exemplo exposto acima, extraído da obra de Foucault, mostra um tipo de leitura sem vínculo com a materialidade presente nas coisas interpretadas. Opera com a falsificação dos indícios, das evidências, com o apagamento das marcas de realidade. O corpo humano é sensível à dor. Quanto mais quando é submetido a grandes traumas, como pancadas, torções, quebra de ossos. Em semelhantes ocasiões, irá, seguramente, sofrer. Esse sofrimento constitui-se como um fenômeno natural, sendo antinatural, inclusive, não demonstrar dor ao ser submetido às monstruosidades acima referidas. 

Esse procedimento do sistema punitivo, que vigorou na Europa até o século XVIII, parece ter ocupado o lugar das necessárias práticas de leitura que partem da realidade das coisas, da materialidade dos objetos e do mundo. Certos indivíduos e grupos parecem não suportar mais as evidências, as marcas de verdade gravadas nos objetos. Demonstram um supremo nojo, inclusive, pela verdade. Transformaram a verdade numa vítima fatal de um comportamento que podemos designar de negacionista.

O negacionista não é apenas aquele que nega as evidências. Ele é também um apaixonado militante em prol da demolição de tudo aquilo que constitua marcas de verdade, de evidências. Esse comportamento chegou, inclusive, aos altos escalões do governo federal. O primeiro ministro da educação do governo iniciado em 2019 militou para que fosse retirada a obrigatoriedade da bibliografia em livros didáticos. Seria a oportunidade perfeita para se poder dar asas à imaginação, para apresentar-se meras opiniões como verdades científicas sem que se possa atestar a veracidade das informações.

O negacionismo é amplamente difundido pelas redes sociais, e atinge milhões de pessoas, estando entre elas a população em idade escolar. Há um consumo maciço de conteúdo negacionista entre estudantes das mais diversas idades. Isso pode estar relacionado ao formato dos textos. São textos muito curtos, que em geral incluem certa dose de humor. São bem direcionados, isto é, atacam objetivamente alguma informação científica ou uma reportagem bem fundamentada. Aborda alguns assuntos que estão ou estiveram em evidência durante a semana. Incluem agressividade, com ataques e xingamentos a autoridades. Produzem a sensação de que quem consome essa mercadoria se transforma numa espécie de especialista no assunto abordado no texto. Criam a ilusão, nos consumidores, de que se é mais esperto do que os outros, de que se está acima do conhecimento científico, que, diga-se de passagem, é tido, este último, como falso.

Parece que desafios gigantescos estão postos aos educadores na era da pós-verdade. Não se trata mais de desenvolver o gosto pela leitura nos estudantes. Na verdade, estes já leem. Um dos desafios consiste em saber o que está sendo lido. O outro consiste em saber o ‘como está sendo lido’.


Imagem de destaque: Pixabay 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *