A hipersimplificação da linguagem

Rafael Muller

Os ataques à cultura literária e à pedagogia são dos mais elaborados. Diria Gramsci que chegam ao plano de interpelação epistemológico: nos modos de visão e interpretação de mundo dos sujeitos. Detenho-me hoje sobre um ponto: o discurso pró-valor de simplicidade/simplificação.

Diz esse discurso, em linhas bastante gerais, que é preciso simplificar as coisas, processos, projetos, ampliando o seu alcance e a compreensão pelas pessoas. Um discurso contra o juridiquês, o economês e tantas outras linguagens técnicas que tornam inacessíveis determinados conteúdos ao público leigo. Considero válido o esforço de simplificação, mas entendo que devemos cuidar para que valores não tomem ares de princípios e que não se troquem os meios pelos fins.

Tomemos um exemplo prático: determinada instituição pública gostaria de saber se os seus servidores realizam um trabalho ao mesmo tempo seguro juridicamente e eficiente, ou se privilegiam um desses valores/princípios, e como tomam suas decisões para priorizar seus trabalhos. Portanto, o objetivo será fazer perguntas cujas respostas permitam essa comparação. Um exemplo seria algo como “busco realizar meu trabalho de modo mais eficiente possível, ainda que incorra em riscos de execução”. Com uma escala de cinco pontos (likert), haveria aqueles que concordariam totalmente (valorizam, pois, mais a eficiência), aqueles que discordariam fortemente (valorizam, pois, mais a segurança e a calmaria), e aqueles intermédios que buscam um equilíbrio entre ambos.

Veja-se que a pergunta possui uma estrutura discursiva complexa: não é uma afirmativa direta, mas possui o conectivo “ainda que…“. Isso exige que a pessoa raciocine sobre sua prática profissional antes de responder. Há um quê pedagógico que só é obtido pela linguagem complexa, sendo uma das características da literatura enquanto instrumento pedagógico para reflexão crítica. A alternativa “simples” seria dividir a questão postulada em duas: “valorizo a eficiência” + “valorizo a segurança”. Elas, em que pese simples, não permitiriam atingir o objetivo pretendido pela pesquisa.

O discurso da simplicidade, sob ares de legitimidade (“tornar a linguagem acessível”), perde-se em seus objetivos. O objetivo passa a ser “que a pessoa consiga responder à pesquisa”, e não as informações a serem levantadas pela pesquisa em si. Os meios suplantam o fins.

E é aí, também, que entra o professor de literatura: ser capaz de mostrar a seus alunos que a linguagem não deve ser simplista, mas tornada simples pelo exercício (e não pela simplificação). Deve-se buscar ampliar os repertórios das pessoas para que lidem com desafios (inclusive de linguagem), e não reduzir-lhes os desafios para que se sintam simplesmente confortáveis onde estão. Linguagem e pensamento estão em relação dialética, de modo que refletir profundamente o mundo exige um trabalho linguageiro importante.

Isso recorda-me “o incomparável Alexandre Petrovitch”, professor de Tentietnikov na obra Almas Mortas de Nikolai Gogol. O educador “chamava à ambição a força motriz das faculdades e, por consequência, esforçava-se por excitá-la. Não se importava com o bom comportamento e costumava dizer: — O que exijo é inteligência e não outra coisa. Quem aspira a ser inteligente, não tem tempo de fazer asneiras; as asneiras devem desaparecer por si próprias.” (GOGOL, 2014, p. 229)

O mesmo vale para a abstração e a quantidade de informações. As justificativas estão em baixa: são consideradas devaneios para o óbvio que já deveria ser sabido ou pesquisado por conta própria. Enquanto não nos percebermos todos como um pouco professores, veículos de pedagogia e formação uns dos outros, em movimento dialético, não haverá mudança revolucionária na sociedade. O famoso trabalho de base depende disso. O que torna algo complexo simples não é a sua mutilação em algo menor e mais direto, mas a explicação paciente daquilo que o justifica, suas relações, seus riscos, e assim por diante. 

Temos toda uma realidade a ser compreendida, formada de suas partes e relações. Se pretendemos entender uma das partes, qual a melhor forma de fazê-lo? A opção mais lógica seria mostrar: 1) o todo; 2) a parte; 3) onde está a parte dentro do todo.

O discurso de extrema simplificação/especialização, entretanto, propõe diferente: 1) mostrar a parte e apenas a parte; 2) afirmar que o todo (ou o restante) não existe.

Mais confortável e acessível? Há controvérsias. Petrovitch há de concordar conosco: “Uma grande parte das lições consistia em referir aos rapazes o que os esperava ao saírem do colégio; pintava-lhes tão bem a sua futura carreira, que eles viviam-na já com o pensamento. Não ocultava nada; apresentava os deveres, em toda a sua nudez, os obstáculos, as tentações, as armadilhas que lhes preparariam”. (GOGOL, 2014, p. 230).

 

Para saber mais:
GOGOL, Nikolai. Almas Mortas. [s.l.]: Centaur Editions, 2014.


Imagem de destaque: Pxhere

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