A cultura do golpe em diversas escalas da vida política e institucional em nosso país – exclusivo

Ana Luiza Jesus da Costa

O dia 08 de novembro de 2016 ficará marcado na história da Universidade de São Paulo como marco de uma profunda mudança em sua estrutura e tradição de Instituição de Ensino Superior pública. Neste dia foi aprovada a nova “estrutura de avaliação” docente que se expressa na criação de uma nova Comissão Permanente de Avaliação e no Estatuto do Docente.

 

Essa reforma se insere num quadro de crise institucional relacionada à crise de financiamento que traz a tona, de forma mais acirrada, as disputa entre projetos de universidade.

 

Também foi aprovada, na mesma reunião do Conselho Universitário, a destinação de mais recursos para a segunda edição do Plano de Demissão Voluntária (PIDV) de funcionários, além do congelamento do orçamento para 2017 sem previsão de reajuste salarial.

 

Haveria uma boa notícia naquela reunião fatídica. O Conselho teria aprovado a reabertura das vagas nas creches universitárias que a reitoria tem mantido fechadas, apesar de haver profissionais e estrutura física para seu funcionamento. O reitor caçou a decisão do Conselho.

Para além dos problemas no conteúdo do que foi aprovado (Reforma na carreira docente, PIDV), outro problema tem a ver com a forma como se deu a aprovação. Como tem sido comum na cultura política em nosso país, a reitoria deu um golpe. Mudanças que deveriam ser tratadas como intervenções no Estatuto da Universidade, foram aprovadas como mudanças apenas regimentais, para as quais não é necessária a maioria qualificada, bastando maioria simples.

 

Desde o início da reunião foi feita solicitação de retirada de pauta do tema, em função do conflito de entendimento jurídico entre a reitoria e o representante dos funcionários. Sequer foi posto em votação, pelo reitor, o pedido de retirada de pauta. Ele mesmo decidiu não aceitar o pedido. Como também decidiu não aceitar, em dado momento, uma “questão de ordem” feita pela representante discente a quem ainda ordenou rispidamente: “comporte-se”. É estarrecedor o autoritarismo e o grau de centralização que caracteriza a estrutura de poder da instituição.

 

Uma das plataformas da candidatura do reitor Prof. Dr. Marco Antônio Zago era o diálogo e a democratização da Universidade. Ele assumira o cargo logo após uma greve estudantil por estatuinte. O reitor comprometeu-se com a reforma do estatuto da Universidade em diversos pontos, entre eles, a revisão das tais estruturas de poder. De todos estes, a única alteração empreendida pela reitoria na lei da Universidade foi a reforma na carreira docente, a contragosto de parcela majoritária da comunidade universitária.

 

Talvez seja importante que o conjunto das universidades públicas observe com alguma atenção a reforma na carreira dos professores da USP. Trata-se de um projeto de universidade onde procura-se apagar por completo as divergências, diferenças, deseja-se que não haja nenhum tipo de conflito. Apenas uma busca incessante pela produtividade, pela evolução, pela excelência internacional medida por rankings. Eliminar a “dinâmica sindical” é tão importante nesse projeto como eliminar a assistência estudantil, o hospital universitário, as creches e toda rede de cuidado às pessoas (estudantes, professores, funcionários, comunidade em torno) que não sejam consideradas “atividades fim”. Eliminar tudo isso é eliminar a presença de determinados sujeitos: estudantes pobres, mães estudantes que não têm com quem deixar seus filhos, as classes populares que circulam no Campus em busca de atendimento hospitalar, etc.

 

O que importa é ser professor ou estudante inovador, internacionalizado, dinâmico, que capte recursos para a universidade, que publique muito, que gere patentes. Para que? Para quem? Não importa. Ou, antes, importa muito, só não se pode declarar, os beneficiários desse modelo. Como não se podia declarar até a Associação dos Docentes da USP divulgar denúncia anônima sobre empresa de consultoria – Mckinsey (a mesma consultora do Governo do Estado de São Paulo para a reorganização escolar), que estaria responsável por desenvolver para a USP um plano de gestão e captação de recursos. O serviço de consultoria teria sido “dado de presente” por um conjunto de ex-alunos à USP sem que o Conselho Universitário pudesse escolher aceitar ou não o regalo.

 

Uma das grandes críticas da comunidade universitária aos projetos de Nova Comissão Permanente de Avaliação e Estatuto Docente, discutidos ao longo de dois anos – mas cuja versão aprovada nos foi enviada com apenas quatro dias de antecedência para sua votação – era, exatamente, a ausência de transparência no processo e nas intenções da reforma. Em nenhum momento foi apresentado um diagnóstico consistente que mostrasse quais os problemas enfrentados pela universidade em decorrência do atual formato de carreira e avaliação docente. Por outro lado, em nenhum momento ficam explícitos quais são os novos critérios de avaliação. É prerrogativa da própria Comissão Permanente de Avaliação, após constituída, em 180 dias, criar esses critérios, ou diretrizes tanto para elaboração dos Projetos Acadêmicos de Departamentos, Unidades e Docentes, como diretrizes para sua avaliação. É um poder muito grande, de definição dos rumos de nossas atividades intelectuais/acadêmicas, concentrado em um órgão composto por pouco mais de 20 pessoas com insignificante representatividade das bases da universidade.

 

Os documentos que instituem tais reformas pautam-se em concepções punitivas de avaliação destinada a gerar pressão e instabilidade entre os docentes. É o que fica claro no mecanismo do “protocolo de compromisso” a ser assinado pelo docente mal avaliado podendo ensejar processo administrativo e exoneração do cargo.

 

Da mesma forma que a ideia destes protocolos ataca a “natureza” do funcionalismo público, outros termos atacam a “natureza” da própria universidade pública em seu pilar: a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão possibilitada pela existência de um regime preferencial de trabalho – o regime de dedicação exclusiva.

 

Este ataque se exprime na lógica dos “perfis docentes”, termo pouco definido nos documentos, mas inferido como a caracterização do professor mais propenso ao ensino, ou à pesquisa, ou à extensão.

 

Quanto à dedicação exclusiva, por mais que a reitoria afirme não pretender mudar a atual condição dos regimes de trabalho, observamos que o ataque ao RDIDP (Regime de Dedicação Integral ao Ensino e à Pesquisa) tem a ver não com a possibilidade de mover os docentes entre os diferentes regimes de trabalho, como era o receio inicial do “rebaixamento” para os regimes de tempo parcial, mas com a necessidade de definição, pelos departamentos, como parte de seus Projetos Acadêmicos, do percentual de professores nos diferentes regimes. A montagem deste quadro já nos diz que o RDIDP não será institucionalmente o regime de trabalho preferencial na Universidade de São Paulo.

 

Os setores mais democráticos e pluralistas dessa Universidade sofreram duro golpe. É tempo de se recomporem para resistirem à implementação de um projeto que, com ares de modernização, aprofunda a subordinação da instituição pública aos interesses privados.

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