A aula da professora Malvina Tavares: cenas da escola pública do passado e seus ecos nos horizontes do tempo – RS

Dóris Bittencourt Almeida1

O ano era 1922, passavam-se cem anos da Independência do Brasil. A foto da “Quinta Aula de São Gabriel de Lageado” captura uma cena da escola pública no Rio Grande do Sul, em que Malvina Tavares está cercada por seus alunos. Uma mirada mais atenta permite inferir que posaram para o fotógrafo em frente à casa da professora, onde a “Aula” tinha seu lugar. Lá, estavam crianças de diferentes idades, meninos e meninas, todos brancos, possivelmente usando seus melhores trajes para o evento. A bandeira do Brasil é o ornamento que compõe a imagem, mostra a força do discurso cívico. Quem seriam as duas mulheres a seu lado? Suas filhas? E as moças à sua direita? Ex-alunas?

Malvina exerceu a docência durante quase toda a Primeira República. O que sabemos dela praticamente restringe-se à foto e ao que escolheu para escrever em um diário íntimo, materialidades guardadas por gerações de sua família. É na seção do caderno intitulada “Outros Apontamentos” que registrou o momento do ingresso no magistério público. Em suas palavras, “Fiz concurso para a cadeira de Encruzilhada nos dias 11-12-13 de julho de 1898, fui nomeada no dia 19 do mesmo e tomei conta do magistério no dia 22 de agosto de 1898.”. E logo em seguida, uma mudança que seria definitiva em sua existência, “Parti de Encruzilhada no dia 20 de março de 99, chegando em minha nova residência São Gabriel do Lageado a 27 de março do mesmo as 7 horas da manhã, abrindo a Aula a 28 dia seguinte”. O gesto de “Abrir a Aula” evidencia o quanto a escola era dependente das ações da professora, como autoridade responsável pela formação das crianças da comunidade em que vivia. 

Pela análise do diário, percebem-se os caminhos percorridos por uma mulher que se construiu como referência na família e na localidade. Afinal, Malvina era uma professora pública, profissão com reconhecimento social naqueles tempos longínquos. Estamos diante de uma mulher que, muito provavelmente, estudou na Escola Normal de Porto Alegre, ainda no século XIX e, desse modo, aprendeu os gestos gráficos, a letra formatada, caprichada, esmerou-se no uso de um vocabulário refinado, demonstrado nas poesias transcritas e nos escritos autorais. 

E o que se sabe sobre essa instituição de formação docente que teve o início de suas atividades no final da década de 1860? Por meio de um movimento de secularização do ensino, a Escola Normal produziu uma cultura da profissão docente. Em fins do século XIX e nas primeiras décadas do período seguinte, o que se observa é o ingresso cada vez maior de mulheres nessa Escola, consideradas, pelos discursos positivistas vigentes, as naturais educadoras. Ao ingressarem na Escola Normal, aquelas moças ocuparam um certo espaço deixado por homens que buscavam outras alternativas de trabalho em um país que, ainda que timidamente, adentrava nos parâmetros da modernidade, pela via de um incipiente processo de industrialização.  

No tempo em que Malvina se dedicou ao magistério, insistia-se na formação do cidadão republicano como horizonte a ser perseguido pela escola. Nas grandes cidades, o Estado investia em algumas poucas edificações escolares com a marca da monumentalidade. No Rio Grande do Sul, logo no início do século XX, os colégios elementares constituíram-se como instituições de ensino primário modelares, em que se previa o ensino graduado, sob rigorosa fiscalização. O paulatino implemento desses colégios conviveu com a instalação dos grupos escolares, ambos pautados pelos ideais higienistas e civilizatórios, como ações de um projeto de modernidade. Entretanto, nas pequenas localidades, o que havia, se é que havia, eram as Aulas isoladas, como a da professora Malvina, marcadas por concepções de escola ainda do final do século XIX.

Nesses duzentos anos, desde a Independência do Brasil, a educação pública enfrentou/enfrenta adversidades em todo o país e no Rio Grande do Sul não é diferente. Em fevereiro deste ano, uma pesquisa do DIEESE – RS feita com as 2410 escolas da rede estadual indica que somente 26,2 % delas oferecem água potável, 13,65%, sequer possuem banheiro em suas dependências, 54,77% não têm esgoto sanitário. Na mesma reportagem do Jornal Sul 21, o CPERS Sindicato, instituição que representa os docentes da rede estadual de ensino, denuncia que os professores tiveram perdas salariais da ordem de 40% em seis anos.  

A partir desses indícios, ponho-me a refletir no que aconteceu com a pauta da educação pública, discurso defendido pelas forças produtivas, sobretudo com a instalação do regime republicano.  Que mazelas persistem e remontam ao século XIX? Como se atualizaram as formas de precarização? Quem são hoje as muitas “Malvinas” que ocupam as escolas do Rio Grande do Sul como docentes, vinculadas às redes estaduais e municipais de ensino? Quais os dissabores e possíveis encantos de seu fazer docente? Muito longe de aproximar docência a sacerdócio, penso que, talvez, o que ainda mova essas mulheres a permanecerem na profissão seja a convicção da importância do gesto de seguirem a “Abrir a Aula”, tal qual as professoras de um outro tempo, gesto se desdobra em inúmeras práticas cotidianas, como exercício de resistência e de persistência estes tempos ainda tão desafiadores para o Brasil. 

 

1Doutora em Educação. Professora de História da Educação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação/UFRGS.


Imagem de Destaque: Arquivo pessoal. Doação da família da Professora Júlia Malvina Tavares à autora/pesquisadora.

 

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