O T-REX DE CADA UM
Analise da Silva
Tenho vivenciado algumas ocorrências que têm aumentado minha preocupação com os rumos da humanidade que deixarei para os meus filhos. São dois homens negros lindos. Seres humanos leves e fortes, doces e potentes.
Engravidei do primeiro aos onze anos de casada, pois antes eu tinha certeza de que o mundo não era lugar para se colocar crianças. Resolvi que queria engravidar, contraditoriamente, no ano em que foi lançada a Unidade Real de Valor; em que Fernando Henrique Cardoso foi eleito o 34° presidente do Brasil, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial; em que o Supremo Tribunal Federal absolveu o ex-presidente Fernando Collor de Mello e o tesoureiro Paulo César Farias, da acusação de corrupção passiva por falta de provas.
Talvez, situações como o relatório final da CPI do Orçamento que aprovou o pedido de cassação dos mandatos de 18 parlamentares; como um eclipse total solar que foi visto em todo o Brasil; como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai decidirem em Buenos Aires criar o MERCOSUL, tenham me dado algumas esperanças. E, com elas vieram meus dois tesouros, minhas vidas.
Hoje, em uma atividade, ouvi a pergunta “qual animal extinto você traria de volta se pudesse?”. Não respondi em voz alta, mas a resposta imediata que eu me disse foi: o T-rex. Vou contar 3 casos ocorridos nas últimas três semanas que explicam, mas certamente não justificam esta minha resposta e peço que falem/escrevam comigo.
Caso 1: Fui fazer exame de sangue em um laboratório grande aqui em Belo Horizonte perto da UFMG. Quando cheguei na antessala das cabines, havia umas dez pessoas. Foram sendo chamadas e foram chegando outras. Uma mulher que já estava quando eu cheguei aproveitou a vinda de uma das funcionárias para chamar alguém e reclamou que estava lá havia muito tempo e que pessoas que chegaram depois já haviam sido chamadas. A funcionária disse que estavam chamando para exames diferentes, mas que iria verificar o que causou a demora. Dois minutos depois a mulher foi chamada. Entretanto, não antes de me fazer pensar no T-rex, pois uma outra cliente que estava sentada perto dela disse-lhe: “Será que o seu exame não é em outra sala?”. Ao que a mulher respondeu: “Se eu estou aqui, é porque é aqui, né?”. A outra cliente não cabia em si de constrangimento quando outra funcionária chamou a mulher. Busquei um copo d’água e ela, acolhendo minha solidariedade, aceitou-o.
Caso 2: Estava eu usando os serviços da UBER em um carro quando o motorista buzinou. Procurei o motivo e, não encontrando, voltei a me concentrar no tablet. Novamente, ele buzinou. Perguntei o que estava havendo e ele apontando com o queixo mostrou para um motociclista que estava na pista na frente do carro em que estávamos e atrás de outro carro. Enquanto isso, o motorista comentou: “Não sei para que o cara compra moto se vai andar devagar!”. Antes de pensar naquele que foi um dos predadores mais ferozes a andar sobre a Terra, eu disse ao motorista que era lá mesmo que o motociclista deveria estar e não passando feito desvairado entre os carros, metendo o pé no retrovisor alheio, arriscando sua vida e a de pedestres e nem manifestando sua síndrome de ambulância ao pensar que todos devem dar-lhe prioridade para passar por haver buzinado. O motorista me ouviu e não disse mais nada. Quando fechei minha boca grande, pensei: “Putz!! Agora minha nota na UBER vai despencar”. Caminhando para o gabinete, refleti sobre a possibilidades de ter falado o mesmo conteúdo de outra forma.
Caso 3: O dentista que cuida de minha família sugeriu uma banca no Mercado Central como sendo uma das melhores para se comprar queijo. Meus filhos, marido e irmão gostam muito. Antes do meu organismo não dar conta mais de absorver a lactose adequadamente, comíamos queijos por prazer. Agora, mesmo eu não podendo, faço questão de continuar abastecendo o lar. Rsrsrs Daí, segui a orientação do dentista amigo e lá fui eu. A banca tem um sem número de queijos com pedacinho para a degustação. Um homem que já estava lá quando eu cheguei, fazia elogios mil aos queijos daquela banca. Um segundo homem que chegou depois perguntou ao funcionário que estava me atendendo qual era um queijo indicado para quem não pode com “coisa salgada”. O funcionário pediu um minutinho, pois estava me atendendo. O primeiro homem respondeu solicitamente, então, ao recém-chegado, dizendo o nome e a origem do tal queijo e disse que o levava para sua mãe que tinha um certo “problema de pressão”. Diante disso, o segundo homem respondeu a ele dizendo: “Você trabalha aqui?” E diante da negativa, completou: “Então, deixa que ele me atende.” Era uma banca de queijos, mas voltei a pensar no famoso carnívoro que dominou a América do Norte durante o fim do período Cretáceo, há 68 milhões de anos. E, enquanto pensava na falta que ele faz, pedi várias informações ao primeiro homem numa tentativa de que ele não desistisse de ser gentil.
Mark Twain disse que entre todos os animais, “o homem é o único que é cruel. É o único que inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. Em geral, quando penso que a solução seja trazer o poderoso que não sobreviveu à extinção em massa que dizimou três quartos da vida na Terra há 66 milhões de anos, me refugio no pouco que consegui absorver das leituras de Paulo Freire. Busco me lembrar de que a Humanização do Ser Humano é necessária porque somos seres inacabados em processo constante de humanização com a qual contribuímos e da qual usufruímos na medida em que aderimos ao projeto de uma Educação Libertadora, pois é aí que me mostro entendedora da oposição histórica entre Humanização e Desumanização dos seres humanos bem como da passagem de uma consciência ingênua a uma consciência crítica capaz de nos tornar, embora em constante construção, sujeitos do processo educativo bem como de nossa própria história.
Daí, busco não ser tão descrente da humanidade quanto Mark Twain naquela fala em um momento em que perdeu dois de seus filhos e que passou por profunda depressão e me lembrar que, por vezes, ações minhas também devem trazer a outras pessoas a vontade de desistir de mim e, como consequência, pedir a volta do T-rex de cada um, pois é nestas ocasiões que nos desumanizamos. Por isso, peço a você que me lê que não desista de mim, nem de você e que me ajude a lembrar que a consciência dos processos de desumanização a que a opressão social, étnica, racial, sexual, etária, econômica, religiosa, territorial nos submete já é em si uma T-irania que tenta nos fazer pessoas escravizadas, desumanizadas pelo rei-capitalismo. Sigamos em coletivo apostando e fazendo por onde ganhar a aposta de que a “A lição sabemos de cor… Só nos resta aprender”.