O peso é moral: a gordofobia em cena no cotidiano escolar

Pedro Gabriel Viana do Amaral

 No Brasil, entre os anos de 2015 e 2018, houve um aumento significativo nas discussões sobre gordofobia e Body Positive, sendo o canal Alexandrismo, gerenciado por Alexandra Gurgel, um dos principais responsáveis por fomentar esse debate, alcançando grande visualização com seus vídeos. Vale ressaltar que, embora essa pauta tenha ganhado corpo no século XXI, o movimento feminista estadunidense já problematizava, desde a década de 1960, as violências sofridas por mulheres gordas.

Esse tema é frequentemente confundido com as discussões sobre padrões estéticos, que afetam todos os corpos, em maior ou menor grau. No entanto, a gordofobia se inscreve em um marcador social da diferença que, ao contrapor à hegemonia dos discursos de saúde e magreza, compromete o exercício pleno da cidadania pelas pessoas gordas. 

Isso se manifesta em diferentes formas de violência, como assédio no ambiente de trabalho – inclusive existem processos arquivados em que pessoas gordas foram ameaçadas de demissão ou não receberam promoções por não aderirem a programas de emagrecimento imposto por empresas. Também existe a  negligência no atendimento de saúde, dificuldades de acesso ao transporte público, falta de acolhimento em espaços destinados à prática de atividades físicas e a reprodução sistemática desse estigma na escola, um espaço fundamental na construção das subjetividades.

No que tange às discussões sobre educação, a gordofobia se manifesta em diferentes tempos e espaços: na dificuldade em encontrar uniformes adequados; na estrutura das carteiras escolares; nas relações entre crianças, adolescentes e jovens, marcadas pela reprodução de violências contra corpos dissidentes – nos quais o corpo gordo se torna alvo recorrente; e nas falas de docentes, que atribuem juízos de valor à alimentação dos estudantes, culpabilizando as crianças e suas famílias pelo ganho de peso, sem considerar fatores culturais, econômicos e políticos. Além disso, essa discriminação impacta a aprendizagem, especialmente em áreas do conhecimento que envolvem o corpo em movimento, como a Educação Física escolar.

Embora esse componente curricular tenha avançado em reflexões teórico-práticas sobre o ensino das lutas, jogos, danças, esportes, ginástica e outras práticas, à luz de questões de classe, étnico-raciais, justiça social, direitos da população LGBTQUIAPN+ e das pessoas com deficiência, ainda apresenta lacunas na construção de uma práxis pedagógica, assim como nas pesquisas científicas, que promovam a emancipação de estudantes gordos e seu direito de aprender de corpo inteiro.

Neste sentido, trago como exemplo a história de um estudante de 10 anos que estava aprendendo o conteúdo de lutas. Em uma das brincadeiras, que trabalham com capacidades corporais vinculadas à força e equilíbrio, ele não quis participar, mantendo a cabeça baixa e oscilando entre sentimentos de raiva e tristeza. Quando questionado sobre o motivo de não participar, ele se expressou da seguinte forma para o professor:

Essa brincadeira me faz sentir um lixo. É isso que eu sou, um lixo. Porque sou gordo. Não dou conta de fazer nada. Não adianta me colocar para fazer isso. Eu não consigo porque sou um lixo. 

Se fosse uma criança magra, provavelmente, a dificuldade de participação seria atribuída ao seu desconhecimento da atividade ou à eficácia do planejamento do professor, que poderia precisar de ajustes. Nesse caso, outros fatores, que não a magreza, influenciaram sua participação. Contudo, para esse jovem gordo, a dificuldade estava diretamente relacionada a como o mundo – capitalista, neoliberal, consumista, obcecado e estruturado por uma dada hegemonia corporal – afeta a vida de existências dissidentes, como neste caso, gordas.

Desde muito novo, ele já entendeu o lugar que seu corpo ocupa na escola, especialmente no que se refere às aprendizagens do corpo em movimento. Correr, pular, equilibrar, coordenar movimentos, fazer força, saltar — todas essas atividades não se resumem apenas à facilidade ou dificuldade de aprender, mas também envolvem questionamentos que assombram esses sujeitos, como: será que meu short vai rasgar quando eu me movimentar? Será que minha blusa vai subir e mostrar minha barriga? Será que meu corpo vai ficar balançando? Se eu não conseguir fazer, é porque sou gordo, e sou um lixo…

Apesar das tentativas do professor de convencê-lo a participar, seja com apoio ou adaptando a atividade para facilitar a exigência corporal, a exposição emocional estava dada. Seria necessário um tempo para elaboração, replanejamento e o fortalecimento de sua autoestima, para que ele voltasse a acreditar em si mesmo e no processo de aprendizagem. Contudo, a escola é um espaço de disputas coletivas e de reprodução de violências naturalizadas. Sem uma reflexão crítica sobre esta temática nos currículos escolares, para além das aulas de Educação Física, provavelmente pouco se avançará.

Viver sendo uma criança, adolescente, adulto ou idoso gordo é lidar com outros pesos — morais — além dos quilos apresentados nas balanças. Pesos que, como diz a filósofa Isabela Figueiredo em seu livro “A gorda”, remetem a dores, à fuga dos espelhos e à vergonha de si ao não caber em um mundo feito para pessoas magras. Portanto, cabe à escola tensionar a hegemonia e se implicar acerca dessas violências que incidem diretamente na construção das múltiplas identidades de pessoas gordas, elaborando, a partir de formação continuada de professores e de outros profissionais que atuem no campo da educação, novas propostas curriculares que lutem pela emancipação desses sujeitos nas relações com sua corporeidade, tornando este espaço um local em que as diversidades dancem, lutem, brinquem e trace rotas de fuga pelo pleno direito, de todos, em se movimentar.

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