Murmuração – entre o superficial e o quase nada

                                                                                                           Ivane Laurete Perotti

A vida não recolhe corpos. Habita-os, quando favorável. E antes que interroguem a conjunção subordinativa adverbial temporal introduzida pelo adjunto adverbial,  “quando favorável” não atende ao escopo biológico. Não aqui. Pelo menos. 

Inquietada, tenho pensado nos estorninhos que invadem o sul do país. Nocivos, segundo os agropecuaristas. Fascinantes, de acordo com os ornitólogos. Quase humanos, esses seres  dotados de capacidade interativa. Evoluídos. Agressivos. Bailantes. Sincrônicos. Vorazes. Imitadores contumazes dos complexos sons da fala humana.

Enquanto os estorninhos demonstram capacidade de realizar acrobacias aéreas de alto desempenho, mantendo atenção constante à velocidade e direção das aves-colegas ao seu redor, nós voamos de estômago. No chão. Na poça. No abismo. E isso sem processar dados suficientes para amaciar a queda. Jogamo-nos em decúbito dorsal. Ventral. Quem sabe, lateral. Tanto faz. Jogamo-nos. Desinformados. Manipulados. Destituídos de entendimento. Dominados por ditos esvaziados de contexto. De sentido. Veracidade? Jazida. Diluída. “ Jazeu, a dita, sob escombros de realidade”. Criada. Projetada. Realidade é manifestação de interesse. Restrito. Contaminado. Dirigido.

A “vida” faz dos estorninhos observadores. A nós, superficiais, a depender das escolhas.  Variamos em densidade “pançal”. De pança. Barriga. Eles, habilidosos em tomar decisões, filtram informações. Nós, na superfície da “samsara”, involuindo. Involuindo cognitivamente. Deixando passar o que nem chegou. Trotando ideias de arreio curto. Sovéu de bagre. Cabresto da cegueira. Podemos culpar a “vida”? 

A física explica o poético dos Sturnus vulgaris. Aprendem a sincronizar os movimentos. Não colidem. E prescindem de um líder. No tecido social, procuramos um salvador. O único. Messias. Nariz de tamanduá. E não o bandeira. Ah! Bandeira! “Vi ontem um bicho/
Na imundície do pátio […]/O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./

O bicho, meu Deus, era um homem.”. O homem, Bandeira, é bicho. Voraz. Agressivo. Vive em bandos: ideológicos. Destemperados. Insatisfeito, por natureza e decisão. Oprime. Falseia. Dá crédito ao insustentável. Abriga o abominável. Caminha na superfície do conhecimento. No quase nada da informação. 

Os estorninhos  criam padrões hipnóticos no céu. O balé da “murmuração”. O homem murmura, desconexo. Ignorante. Desautorizado. Ataca. Viola. Invade. Talvez  seja esta a única semelhança para com as aves que assustam o sul do Brasil. 

O homem… ah! Bandeira! O homem perdeu a chave. 

Para ler mais…

BANDEIRA, Manoel. O bicho. Poema modernista. Publicado no RJ, em 27 de dezembro de 1947. 

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