MENINAS NEGRAS NO AMBIENTE ESCOLAR: ENTRE O BRINCAR E O PERTENCER
Thais Ferreira Dutra
Na sala de aula, uma menina negra de 2 anos se destacava das demais por não se envolver nas brincadeiras e atividades propostas para a turma. Enquanto as outras crianças exploravam os brinquedos e interagiam nas brincadeiras coletivas, ela frequentemente se afastava, engajada em tarefas de cuidar das crianças e do espaço da sala. Observava com atenção as demandas das crianças e começava a se oferecer para cuidar dos demais bebês, querendo acalmá-los quando choravam, ou limpá-los quando ela mesma julgava necessário.
A garotinha negra catava objetos do chão e os colocava no lixo, como se fosse responsável por manter o ambiente limpo. Em outras ocasiões, pegava itens das brincadeiras, como bonecas ou blocos, e os usava para “limpar” o chão, imitando os gestos de uma cuidadora. Sua postura, trazia à tona uma reflexão sobre os papéis que a sociedade atribui às meninas negras desde tão cedo, especialmente no que diz respeito às expectativas de cuidado e trabalho doméstico.
Mesmo com as intervenções da professora, que orientava a criança a brincar com os pares e afirmava que aquelas tarefas eram responsabilidades dos adultos, ela frequentemente se afastava, engajada em tarefas de cuidado, que por vezes se assemelhavam a um brincar simbólico. A cena revela uma complexa interação entre as normas sociais e a percepção que a criança tem de seu lugar no mundo, mesmo em um ambiente escolar.
A teoria do desenvolvimento cognitivo, amplamente difundida por Jean Piaget, enfatiza o papel do brincar na construção do pensamento infantil. Ele destaca que, durante a infância, as crianças utilizam do jogo simbólico para representar e assimilar a realidade ao seu próprio modo. No estágio pré-operatório (aproximadamente dos 2 aos 7 anos), o brincar permite que a criança reproduza situações vividas, atribuindo novos significados a objetos e ações.
Essa atitude da menina, ao se afastar das brincadeiras e se engajar em tarefas de cuidado, pode ser vista como uma forma de adaptação a normas e expectativas sociais que já são internalizadas, mesmo que de forma inconsciente. O “cuidar” dos outros e do ambiente pode refletir uma noção de responsabilidade atribuída às meninas negras, que frequentemente são associadas ao trabalho doméstico e à figura da cuidadora desde muito cedo. Esses papéis, muitas vezes invisíveis, se tornam uma parte do processo de socialização, influenciando a forma como a criança se vê e se posiciona no mundo escolar.
No entanto, ao não participar ativamente das brincadeiras coletivas, ela também se distancia da construção de um senso de pertencimento. O espaço da sala de aula, que deveria ser de exploração, liberdade e experimentação, acaba sendo marcado pela ausência de oportunidades para que ela vivencie diferentes papéis sociais. A brincadeira, neste contexto, deixa de ser apenas um momento de lazer, tornando-se uma arena onde se negociam identidades e pertencimentos. A menina negra, ao se afastar, pode estar sinalizando, de maneira silenciosa, a dificuldade em encontrar seu lugar em um ambiente que não reflete suas experiências e realidades.
Essas atitudes não se limitam apenas ao comportamento, mas também se refletem na linguagem do brincar. As crianças, ao interagir com os objetos e com os outros, criam narrativas moldadas por suas vivências e pelas normas sociais que internalizam. A menina negra, ao usar bonecas ou blocos para “limpar” o chão, imita o papel de cuidadora, não apenas em suas ações, mas também ao escolher quais atividades lhe são permitidas ou aceitas dentro daquele espaço. Em muitas brincadeiras, especialmente as que envolvem o cuidado e a organização, ela pode estar reproduzindo as expectativas de gênero e raça que, desde cedo, são atribuídas a ela. O brincar, portanto, não é apenas um reflexo do que a criança vive, mas uma forma de reinterpretação e adaptação às normas que cercam sua identidade.
Ao pensarmos em como as meninas negras se relacionam com o espaço escolar, é essencial refletir sobre o impacto da invisibilidade dessas crianças nas narrativas de pertencimento. A escola precisa ser um lugar onde todas as crianças, independentemente de sua origem, sintam-se representadas, valorizadas e capazes de experimentar a liberdade do brincar sem serem limitadas por estereótipos de gênero ou raça. Desejo que todas as garotas negras possam, com coragem e liberdade, explorar as infinitas possibilidades de sua identidade, se reconhecendo como protagonistas de suas narrativas. Que o brincar, então, seja um campo de expressão plena, onde cada uma delas possa experimentar, criar e viver a pluralidade de quem ela realmente é, de forma plena e próspera.