Medusa com a cabeça de Perseu

Igor Mendonça Cardoso Gomes

Entre outubro de 2020 e agosto de 2021, em um parque novaiorquino, ficou exposta uma imponente escultura, medindo quase dois metros. Era um trabalho de Luciano Garbati, denominado “Medusa with the Head of Perseus”, alocado em frente ao fórum que tinha sido palco da condenação do magnata do cinema Harvey Weinstein por crimes sexuais cometidos contra duas mulheres.

Na obra, uma bela Medusa desnuda segura uma espada com uma mão, enquanto a outra sustenta a cabeça recém-decepada de Perseu. Conquanto a locação já estivesse prevista antes do julgamento de Weinstein, parecia simbolizar um tempo de mudança na cultura ocidental, em que as formas de abuso sexual contra as mulheres tomaram a arena dos debates públicos.

Embora tenha alcançado status de símbolo do #Metoo (2018), a estátua fora concebida por Garbati em 2008, como uma releitura da obra “Perseu com a cabeça da Medusa” do renascentista Benvenuto Celini. Nesta, o herói mitológico Perseu exibe a cabeça de Medusa como troféu da vitória em um desafio lançado por Polidecto. A escultura de Garbati inverte a cena.

Na versão de Ovídio, Medusa era uma bela jovem que foi transformada em monstro por Atena como punição por ter sido estuprada por Netuno dentro do templo da deusa. Daí porque a releitura novaiorquina parece simbolizar a demanda feminina por justiça, superando o mito de que a culpa das agressões sexuais costuma ser das vítimas.

Lembremos, porém, do desafio acima referido. Anos antes, Polidecto, rei de Sérifo, havia abrigado Dânae e Perseu, filho desta com Júpiter, após ambos terem sido lançados ao mar por Acrísio. Com o tempo, o desejo de Polidecto por Dânae aumentava, mas Perseu, já crescido e conhecido por sua coragem, era um obstáculo para seus planos. Por isso, pretendendo livrar-se do herói, Polidecto lançou-o na caçada ao monstro mitológico. Uma virtual vitória de Medusa, assim, longe de representar redenção, resultaria no êxito do estratagema de Polidecto: utilizar a maldição sofrida por uma mulher violentada com o propósito de subjugar outra.

Eis o motivo por que a escultura de Garbati representa uma superação do machismo apenas na superfície discursiva. Mas, como um espetáculo de sangue geralmente acalma as massas, a cabeça de Perseu (mesmo talhada em pedra) não deixa de cumprir essa função.

O tema é complexo. Mas eu gostaria de colocar, neste limitado espaço, a hipótese de que a obra de Garbati simboliza uma vingança deslocada, que implica um efeito de sentido de justiça, mas mira erroneamente todo o gênero masculino, em lugar de Netuno (o deus estuprador), Polidecto (o poderoso rei), ou mesmo Atena (a deusa-juíza).

Uma preocupação similar anima alguns questionamentos ao discurso social dominante sobre condutas sexuais e sua qualificação jurídica. Para Martha Lamas, esse discurso é marcado pelo feminismo radical estadunidense, movimento que logrou diversos avanços, inclusive no campo da justiça criminal. Nada obstante, ela aponta que o binômio mulher-vítima/homem-agressor reduz ao simples esquema de dominação sexual a complexa rede de estratégias e dispositivos de poder que sustentam a desigualdade, como se a sexualidade masculina fosse a raiz de toda desigualdade de gênero. Temos, assim, uma essência feminina superior, mas desde sempre vitimizada por uma essência masculina opressora.

Acompanhada de outras feministas, Lamas postula uma perspectiva antiessencialista, que dê conta da complexidade das relações sociais e reconduza seus esforços para o combate ao conteúdo discriminatório dos comportamentos e estruturas sociais, reduzindo o foco dado a seu conteúdo sexual. No mesmo sentido, Vicki Shultz, tratando do assédio sexual no local de trabalho, lembra que a equiparação entre “conduta sexual” e “discriminação de gênero”, foi a poderosa estratégia adotada pelo movimento feminista para veicular juridicamente seus pleitos de igualdade. Focalizava-se, com isso, o conteúdo sexual, em vez do conteúdo discriminatório, fazendo com que qualquer atitude de conteúdo sexual dos homens no ambiente de trabalho fosse considerada discriminatória, independentemente do contexto e da estrutura em que ocorresse. Para a jurista, essa equiparação alinha-se ao neopuritanismo e a um projeto neotaylorista que pretende suprimir a sexualidade e a intimidade no local de trabalho, sem necessariamente investigar se tais condutas constituem violações à igualdade de gênero em seus objetivos ou efeitos. É assim que a cegueira punitivista, que postula uma ética assexual do trabalho, mantém incólume a desigualdade.

Essa surpreendente interseção entre feminismo, puritanismo, ideologia neoliberal e punitivismo merece mais exploração. Não tenho aqui a pretensão de lançar conclusões, mas apenas um questionamento, na companhia das eminentes pensadoras citadas: em que medida o paradigma homem-agressor/mulher-vítima servirá, no século XXI, para concretizar a igualdade de gênero?

Para saber mais
Em As Metamorfoses, p. 85 (São Paulo: Ediouro, 1983), onde se lê: “Belíssima, ela despertara a esperança e o ciúme de muitos pretendentes, e nada tinha mais belo que os cabelos. Conheci um homem que contou tê-la visto. O senhor do pélago a violentou, dizem, no templo de Minerva [Atena]. A filha de Júpiter afastou os olhos e cobriu com a égide o casto rosto. E, para que o fato não ficasse impune, transformou os cabelos da Górgona em horríveis serpentes. Ainda agora, para aterrorizar os atônitos inimigos, ela conduz, diante do peito, as serpentes que criou.”.


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