Mayombe: “a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto”

Suelio Geraldo Pereira

O personagem-narrador Comissário Político, no epílogo que encerra o livro Mayombe, declara numa confissão intimista e em recordação ao seu companheiro de guerra morto, sem medo, que “a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia?” (PEPETELA,1982, p.268). Deixa-nos, o Comissário, uma pergunta intrigante. Será que há mesmo uma fronteira entre a verdade e a mentira? Alguns seres humanos sabem onde se encontra esta fronteira? No senso comum há o ditado de que uma mentira dita muitas vezes se torna uma verdade, porém, não podemos acreditar tão fielmente nesses ditados, principalmente em épocas de várias notícias falsas propagadas (isso só piora em ano eleitoral).

Um ponto verificado na afirmação do Comissário é a constatação de ser a verdade um fato dado, fixo, constante e aceito por todos (do lado de cá é a verdade, do outro lado é a mentira), entretanto a fronteira que demarca seu território não é aparente, não se mostra às claras. O ser humano precisa desvendar este caminho de areia, que é fronteira, no deserto de areias.

Entretanto, nas palavras de Friedrich Nietzsche em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, no ser humano a arte da dissimulação atinge o cume, a mentira, o engano, o mascaramento, “numa palavra, o constante saracotear em torno da chama única da vaidade, constitui a tal ponto a regra e a lei” que é quase incompreensível e duvidoso como pode vir à luz entre os humanos “um legítimo e puro impulso à verdade”. (NIETZSCHE,2007, ps.27-28). A verdade então existe, porém, onde a encontramos? Como podemos chegar nela, ou melhor, como podemos vislumbrar o caminho que é a sua fronteira com a mentira? Mas, antes de podermos refletir sobre essas questões, precisamos entender o ponto nevrálgico que circunscreve todas estas indagações, sendo basicamente: o que é a verdade?

A nossa ideia de verdade foi elaborada ao longo do tempo a partir de três concepções diferentes vindas da língua grega, da latina e da hebraica. A contribuição advinda do grego veio pelo termo aletheia, que significa não-autorizado, não-escondido, não-dissimulado. Neste sentido, a verdade está ligada ao que percebemos através dos sentidos (visão, audição, tato, paladar), “a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é.” (CHAUI, 2000, p.127). No latim veritas é o termo que designa verdade e seu sentido refere-se à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato (contar ou escrever uma história). Desse modo, nesta concepção a verdade está intimamente relacionada com a linguagem e a vontade, pois o ser humano somente poderá expressar a verdade se ele quiser e tiver vontade. Quanto ao hebraico, Emunah é a palavra para a verdade e tem o significado de confiança. O importante, neste caso, é não trair a confiança e não ser infiel com a palavra proferida: “Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito.” (CHAUI, 2000, p.127).

Dessa maneira, de acordo com Marilena Chaui (2000, p. 128):

Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas se refere aos fatos que foram; emunah se refere às ações e as coisas que serão. A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes (como na aletheia), aos fatos passados (como na veritas) e às coisas futuras (como na emunah). Também se refere à própria realidade (como a aletheia), à linguagem (como na veritas) e à confiança-esperança (como na emunah).

A busca pela verdade é o vértice que une estas três concepções descritas. O ser humano já cansado de ser iludido, ou ao menos aqueles que perceberam viver num mundo fantasioso, imposto e indiscutível, começou a indagar, a questionar e a procurar a verdade no que era lhe oferecido, sem nenhum esforço intelectual, pelos sistemas de produção de informações, como o governo, a propaganda, a igreja, a escolas etc. Não é-nos permitido conhecer a verdade sem o empenho constante e sofrível da investigação e da contestação perante tudo o que nos é infringido no cotidiano.

O caminho que é a fronteira entre a verdade e a mentira, está lá – aliás, até o próprio caminho que é a fronteira também deve ser posto em questão. Embora seja difícil notar este limite, devemos sempre tentar vislumbrá-lo e nunca o perder de vista, pois senão correremos o risco de atravessá-lo e, assim, ficarmos no lado mais conveniente e menos árduo da mentira. Como disse o Comissário Político, “não há trilhos amarelo no meio do verde.” (PEPETELA, 1982, p.268), isto é, a verdade não nos será entregue gratuitamente, se ela for temos que desconfiar, pois neste mato tem cachorro.

Para saber mais
CHAUI, Marilene. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

NIETZECHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução e organização Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007.

PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.


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