Desde a Constituição Federal de 1988, a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Artigo 206, inciso VI) transformou-se num princípio estruturante da gestão educacional. Fruto de muitos debates e proposições durante a década de 1980, os quais também estiveram presentes na Assembleia Nacional Constituinte (Adrião e Camargo, 2007), a ideia de que a educação pública precisa ser gerida de modo democrático obrigou a revisão posterior das legislações estaduais e municipais, visando adequá-las ao novo momento vivido pelo país, após mais de 20 anos de vigência da ditadura militar.
A LDB de 1996 consolidou este princípio e ajudou a delimitar o seu escopo: em primeiro lugar, trata-se de garantir a participação de docentes na elaboração dos projetos político-pedagógicos das escolas, e aos pais e responsáveis permitir que participem de conselhos escolares ou equivalentes (artigo 14). Além disso, a lei definiu que os sistemas de ensino devem garantir às escolas “progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira” (artigo 15).
O texto legal, a partir daí, abre-se às diversas e, muitas vezes, contrastantes interpretações. Dado sua novidade e seu caráter estruturante, o princípio da gestão democrática do ensino público passou a ser reivindicado pelos diferentes entes federativos, instituições de ensino (básico e superior), movimentos sociais, sindicatos, mas também empresas, consultorias, organizações não-governamentais, como um grande leque capaz de abarcar as mais diversas ideologias e visões do que seja, de fato, uma gestão democrática.
Entidades de classe dos profissionais da educação e pesquisadores do campo acadêmico (universidades, institutos de pesquisa etc.), tendem a considerar insuficientes este marco legal, uma vez que se circunscreve apenas ao ensino público, excluindo o ensino privado. Além disso, ao incorporar o “na forma da lei”, a CF deixava a cargo de legislações posteriores a sua execução. Também costuma-se discutir mecanismos de escolha dos gestores escolares (Paro, 2007), a autonomia financeira e pedagógica das instituições (Oliveira, 2007), em especial diante de políticas de sucateamento das escolas públicas e “apostilamento” do ensino. Reivindica-se um aprofundamento dos mecanismos democráticos de gestão da educação, seja considerando seu financiamento, controle social, abertura e pluralidade curricular, combate a desigualdades educacionais etc.
Há também um outro grupo de atores sociais, em geral empresas, bancos, consultorias privadas, que também reivindica a “gestão democrática” como princípio. Em geral, porém, estes grupos costumam enquadrar seus discursos em defesa, ao mesmo tempo, do uso do dinheiro público para fins privados na educação, do controle do currículo para fins de formação para o mercado de trabalho, da prescrição de currículos e sistemas apostilados que, na prática, retiram a autonomia dos professores. Também se verifica uma visão gerencialista da gestão escolar, especialmente do papel do Diretor de Escola na liderança do trabalho pedagógico das instituições de educação básica.
Seja como for, o princípio da gestão democrática é sempre reivindicado pelos diversos grupos em disputa para legitimar sua atuação. Isso, a nosso ver, revela que a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”, ao tornar-se um princípio constitucional, funciona como um dispositivo potente na definição das práticas do campo educativo. Sua consolidação na LDB e, consequentemente, em outras legislações infraconstitucionais, por mais tardia que fosse, obrigou um reposicionamento de todos os agentes do campo, no sentido de buscar manifestar adequação a ele, mesmo que de modo muito contraditório.
Uma das contradições é a dialética da implementação da gestão democrática em um contexto de aprofundamento da lógica neoliberal, tecnicista e autoritária, que impõe o gerencialismo no lugar da participação social. Instituições de fora do campo educativo, como as empresas, passam a participar das lutas da educação, influenciar políticas públicas e impor suas lógicas de funcionamento, fazendo da “gestão democrática” uma armadilha discursiva sob a qual justificam medidas das mais autoritárias e privatistas. Já para o grupo de pesquisadores e educadores que, inclusive, influenciaram a mudança constitucional, a contradição passa a ser a necessidade de defender o princípio constitucional, ao mesmo tempo em que se aponta sua insuficiência e sua aplicação muitas vezes no sentido contrário ao que preconiza o conjunto de leis educativas.
Ao nos situar no campo da educação, como educadores e pesquisadores comprometidos com o movimento social que tornou constitucional a ideia de “gestão democrática”, cabe-nos o papel de seguir fiscalizando, problematizando e propondo outras possibilidades de construção da educação como um direito social em favor de “uma sociedade livre, justa e solidária”, comprometida em “erradicar a pobreza, a marginalização” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (Constituição Federal, artigo 3º). O trabalho é árduo mas sabemos que, se ainda hoje existem estruturas não privatizadas e possíveis de serem disputadas na educação, é por causa da resistência imposta pela sociedade civil organizada ao longo das últimas décadas. Seguimos resistindo.
Para saber mais
ADRIAO, T.; CAMARGO, R. B. A gestão democrática na Constituição de 1988. In: ADRIAO, T.; OLIVEIRA, R. P. Gestão, financiamento e direito à educação. Análise da Constituição Federal e da LDB. São Paulo: Xamã, 2007, p. 63-72.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Acesse aqui.
OLIVEIRA, R. P. O financiamento da educação. ADRIAO, T.; OLIVEIRA, R. P. Gestão, financiamento e direito à educação. Análise da Constituição Federal e da LDB. São Paulo: Xamã, 2007, p. 83-122.
PARO, V. H. O princípio da gestão escolar democrática no contexto da LDB. ADRIAO, T.; OLIVEIRA, R. P. Gestão, financiamento e direito à educação. Análise da Constituição Federal e da LDB. São Paulo: Xamã, 2007, p. 73-82.
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