“IA” no pretérito imperfeito do indicativo de humanidade

Daniel Machado da conceição

Estamos vivendo um momento extraordinário da breve jornada do Homo sapiens no planeta Terra e como resultado, encaramos as consequências do que está sendo chamado de antropoceno, impactos pelas ações indiscriminadas do ser humano na natureza. Na busca pelo conforto e segurança, realizamos desenvolvimentos tecnológicos que acabam por diminuir o esforço físico e mental para realização de tarefas até mesmo simples do cotidiano. Tal fato nos deixa acomodados nas mais diversas dimensões da vida humana. 

Ambos os processos estão conectados, no segundo caso, permitem a intensificação da nossa produtividade, acelerando o processo e criando uma dependência do “trabalho não vivo”. O exemplo mais recente é a chegada da Inteligência Artificial (IA). É sabido que o impacto da chamada quinta Revolução Industrial será transformadora e duradoura, seus efeitos podem ser comparados com a revolução científica ocorrida na transição do mundo moderno para o contemporâneo. Estamos observando novos questionamentos que tensionam princípios filosóficos, dogmas religiosos e redefinem as interações sociais entre humanos e agora com não-humanos. 

Acalorados debates sobre vida e morte, inteligência e consciência, além da capacidade humana autoral, invenção e criação, estão sendo discutidos a partir de novas premissas e atributos que anteriormente nunca estiveram postos.

Surpreende observar a velocidade do desenvolvimento tecnológico e como cada vez mais suscita dúvidas sobre o que é realidade (real) e o que é trabalho não vivo (artificial). Na última semana, o lançamento de uma atualização da IA Flow(1), Veo 3 do Google, ferramenta para geração de vídeo, tensiona a linha entre o real e o artificial. A recente atualização para produção de vídeos por meio da inteligência artificial são estarrecedoras e fantásticas. 

A chamada realidade aumentada está confundindo as pessoas que assistem aos vídeos e aceitam com naturalidade, se emocionam com a expressividade dos personagens artificiais e acabam até mesmo por questionar como que determinado vídeo não é real. Estamos partindo do princípio de que a realidade está dada e duvidamos que aquilo que observamos seja algo não-real. Os incríveis avanços tecnológicos no campo da produção de imagens estão permitindo que artificial (“irreal”) seja aceito como realidade (“real”).

É assustador, pois, algo muito presente na trajetória humana foi o desenvolvimento de ferramentas, que na chamada Revolução Industrial ofereceram um salto que nos permitiu operar máquinas, logo deixamos que a operação fosse autônoma, mas agora atingimos um ponto que estamos nos relacionando com elas, soando como constrangimento para o Homo sapiens

Parece frustrante que, após desencantar o mundo, incentivando que a ciência encontrasse soluções para a vida e os mistérios do mundo, estamos no ponto de criar novos deuses artificiais e encantados que podem interagir com a humanidade. Nossa versão Homo demens está mais propensa a aceitar esse novo mundo, sem questionar os impactos ou consequências, mesmo que acene para própria destruição.

Obviamente, é possível perceber o motivo de se falar tanto sobre inteligência emocional, por aparecer como contraponto à inteligência artificial. Chegamos ao estágio de ser necessário valorizar aquilo que garantiu aos primeiros grupos humanos aumentar sua probabilidade de sobrevivência, apoio mútuo e coletividade, resumindo dar atenção a nossa capacidade de viver junto.

A inteligência emocional na sociedade capitalista aparece como uma habilidade ou competência a ser desenvolvida pelas pessoas que atuam em diversas atividades profissionais e que são exigências no espaço escolar, durante o lazer e no espaço familiar. Esse desejo de valorização do emocional, aquilo que ainda nos diferencia das ferramentas artificiais, é um sinal de que estamos perdendo-a, em um aparente processo de erosão sociocultural.

Essa necessidade de sermos lembrados sobre a inteligência emocional, envoltos na inteligência artificial que paulatinamente substitui a humanização das relações, é um resquício de nossa sobriedade. Importante pensar para onde queremos ir, pois idealizamos um caminho e nos encontramos em uma encruzilhada. A pergunta é: ir ou não ir, eis a questão?

A escola pode ser o espaço para que o debate ético, moral e existencial sirva para a construção de um novo paradigma humano ou uma reforma do pensamento. O momento é oportuno em razão do cenário social, mas principalmente em razão de um conjunto de gerações afetadas de maneiras diferentes pelos avanços tecnológicos estarem reunidas no mesmo tempo presente. Na esfera da cultura, capacidade humana de criar e dar sentido à vida, também encontramos uma âncora para suportar a realidade entre o humano e o não-humano. 

Está evidente que estamos em um ponto de inflexão, onde os avanços tecnológicos, embora nos proporcionem conforto e eficiência, também nos confrontam com dilemas existenciais e éticos sem precedentes. Assim, devemos ponderar a reflexão de Aldous Huxley no livro Admirável mundo novo, que, em um dos muitos diálogos, diz: “Este é o propósito de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social do qual não podem escapar” (Huxley, 1969, p. 37).

Sobre o nosso destino social e humano, a escola pode auxiliar na escolha se será um espaço exclusivo para diferenciar humanos de não-humanos, ou se ‘ambos’ irão como aliados construir algo novo e jamais pensado pelo Homo sapiens. A partir da preservação daquilo que nos trouxe até esse estágio, a valorização da empatia, a conexão e o cuidado mútuo. Independente do caminho que desejarmos seguir, o importante é perceber que o mundo real estará cada vez mais digital e artificial.

Referência:

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro: Brasil, 1969.

Exemplo de vídeo gerados pela IA de realidade aumentada.

  1. Vídeo 1
  2. Vídeo 2
  3. Vídeo 3

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