Educação vem de casa!

Henrique Caixeta

Alguns dias na semana, em especial aqueles corridos, nos quais não há tempo para cozinhar, eu compro marmita pronta. No meu bairro há uma senhora que cozinha e vende marmitas no whatsapp, comida caseira, gostosa, preço acessível, coisa de bairro. Não me lembro como exatamente trocamos whatsapp, mas todos os dias ela me manda uma foto, feita no canva, com duas opções de marmita. Eu sei que ela vende bastante comida no bairro por que conheço outros vizinhos que compram marmita com ela e por que nos dias que a procuro depois do meio-dia raramente sobra comida pra ela vender, eu ficando na mão algumas vezes. Via mensagem o trato é muito cordial e ela mesma responde todas as mensagens, algumas vezes em áudio, o que comprova que é ela quem fica com o celular.

O serviço não conta com entrega, então você pode pedir um motoqueiro pra pegar a marmita ou você mesmo pode ir buscar na casa dela. Como é uma coisa de bairro, assumo que, como eu, a maioria da clientela busque a marmita. Ao chegar na sua casa, uma casa humilde, é possível ver o alpendre, a sala e ao fundo a cozinha. E aí começa o incômodo. Pra mim, um mineiro inveterado, é costume chegar na casa de desconhecidos e ser recebido com muita educação e cordialidade. Causa um estranhamento que, ao chegar para buscar a marmita, é possível ver a casa cheia de pessoas, em especial homens. Mas ninguém se prontifica a atender o portão de grade. As pessoas me olham, me vêem, mas me ignoram até eu chamar. Do portão eu consigo ver minha marmita separada em cima da mesa, com meu nome escrito. Mas ao chamar e dizer “Vim buscar a marmita pra Henrique”, as pessoas se viram e chamam a senhora na cozinha, atarefada sobre o fogão. Ela então sai da cozinha com pressa, pega minha marmita em cima da mesa e vai até o portão me entregar com o maior sorriso do mundo, enquanto os homens na sala voltam a assistir televisão ou mexer no celular.

A marmita é ótima, comida caseira com sabor de comida caseira, tempero mineiro. Mas a comida desce sempre meio mal pela garganta. Eu como pensando no quão surreal é não se dispor a ajudar minimamente a pessoa que provavelmente cozinha para todos na casa. Não vou aqui me exercitar a fabulação e supor que, nessa operação toda que envolve comprar comida, cozinhar, vender, divulgar, receber o pagamento e entregar no portão, ela não receba uma única ajuda. Mas para mim é muito incômodo ver uma casa cheia de homens que se recusam, mesmo que na ponta da produção, a ajudar uma senhora que está trabalhando. Isso me leva a me questionar algo que autoras feministas apontam há muito tempo, homens e mulheres são criados de maneira muito diferente frente aos trabalhos da casa.

Qualquer pessoa que tenha entrado em contato com o mínimo de teoria feminista já deve ter se deparado com críticas relacionadas à criação masculina ou sobre a invisibilização do trabalho doméstico como trabalho. A verdade é que tradicionalmente a criação de meninos e meninas é muito diferente dentro de casa. Normalmente meninas são ensinadas desde cedo a serem mais asseadas, cuidadosas e a performar trabalhos domésticos. Até mesmo como brincadeira, uma vez que diversos brinquedos “de menina” envolvem afazeres como cuidar de bebês, cozinhar ou limpar. Já os meninos, sob uma desculpa de serem naturalmente mais bagunceiros ou “desastrados” são ensinados a se ausentar das tarefas de cuidado com a casa e com os familiares. Em contraponto aos brinquedos “de meninas” os brinquedos “de meninos” envolvem a conquista do mundo fora do lar, performando profissões como policial, bombeiro, jogador, etc. O cuidado para o menino envolve não quebrar as coisas e se concentrar em não atrapalhar, enquanto para a menina envolve zelar, manter e cuidar de outros. Isso não significa, é claro, que todo menino é descuidado ou não aprende a zelar pela casa e toda menina aprende. Mas que há uma diferença gritante entre como cobramos e ensinamos as crianças a se comportarem a partir do gênero.

Dentro das escolas é importante estar de olho no comportamento das crianças. Reconhecer quanto antes comportamentos sexistas de meninos, meninas e menines é o primeiro passo para que a escola possa fazer seu papel fundamental e constitucional que é ser UM DOS agentes educativos da vida da criança. Digo “um dos” porque não é obrigação exclusiva da escola como alguns pais pensam. Contudo, a escola tem um lugar de destaque, por ser onde o estudante é confrontado com o diferente, com o incômodo. É o espaço de socialização que não está sob controle direto da família. Portanto, é lugar de destaque para mostrar aos estudantes que comportamentos naturalizados em casa talvez não sejam adequados para a vida em sociedade. Por isso é importante estarmos atentos desde cedo a determinados comportamentos dos pequenos.

Estamos constantemente em jogo com as crianças, aceitando, reforçando, coibindo, recusando e muitos outros “andos”, “endos” e “indos” em relação ao seu comportamento. Isso tudo sem nem mesmo atinar do caráter educativo de nossos atos. A forma como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo vira exemplo. Isso significa que precisamos estar atentos a quais comportamentos eles reproduzem para podermos propor novas formas de agir, liderando pelo exemplo sempre. Por que, para criarmos um mundo melhor, onde o gênero é cada vez menos definidor de como nos comportamos, é necessário que cortemos o mal pela raiz, nos nossos próprios comportamentos, nos educar. Porque educação vem de casa.

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