Depois de amanhã teremos, uma vez mais, eleições municipais. O fato de elas se realizarem na data que foi durante muito tempo a destinada à escolha de mandatários e representantes legislativos, faz lembrar a experiência de trinta e um anos atrás. Naquele 15 de novembro de 1989 vivemos as primeiras eleições para presidente da República após o fim da ditadura civil-militar. Estávamos sob o governo de José Sarney, eleito indiretamente quase cinco anos antes por um Colégio Eleitoral. Apesar de desastroso, o governo do chefe político maranhense teve o mérito de evitar movimentos que pudessem nos levar a um retrocesso institucional. Para uma democracia muito mais imperfeita do que o tolerável, como ainda hoje é caso da brasileira, foi algo importante.
As eleições de 1989 tiveram no primeiro turno uma miríade de candidatos que contava com políticos tradicionais (trabalhistas, como Leonel Brizola, quase socialdemocratas como Mário Covas, autoritários, como Paulo Maluf), aventureiros que tendiam ao bizarro (ou ao fascismo, como Enéas), lideranças que emergiram havia pouco tempo (como o líder sindical Lula, o playboy Fernando Collor de Mello, a grata surpresa que foi Roberto Freire). Collor liderou as intenções de voto e chegou ao segundo turno contra Lula, que nos últimos dias de campanha ultrapassara o favorito e temido (ameaçava fechar a Rede Globo de Televisão) Brizola.
Menos de uma semana antes do primeiro turno, aconteceu uma grande surpresa, o acontecimento que, segundo Eric Hobsbawm, deu fim ao breve século vinte. A força da mobilização popular, aliada a um erro de comunicação, levou milhares de habitantes de Berlim Oriental, capital da República Democrática da Alemanha, a em 9 de novembro se dirigir ao muro que a separava de sua congênere ocidental. Na verdade, tratava-se de uma cidade seccionada desde o final dos anos 1940, o que se intensificou ainda mais a partir da década de 1960, quando as duas partes da Alemanha passaram a ser ainda mais rigidamente separadas. De um dia a outro, tudo mudara na ordem das coisas, me dizia um amigo alemão que vivia no Brasil e que, nascido logo depois do fim da Segunda Guerra, crescera na República Federal sem jamais conhecer, a não ser pelo relato histórico, o país unificado. Desconsertado, comparava o feito ao que seria uma alteração na ordem do tempo, ou ao deslocamento da Antártida em direção a Nova York.
O fim do socialismo realmente existente levou muitos a, com rapidez impressionante, renunciarem a qualquer crítica ao capitalismo. Na década seguinte, o que vimos foi o espraiamento do neoliberalismo que, quando disfarçado de socialdemocracia, fez com que esta última posição perdesse muito da sua força motriz original. O Brasil não ficou fora desse processo, tendo sido o governo de Fernando Henrique Cardoso seu artífice, depois do fracasso da aventura Collor e da transição possível com Itamar Franco. Ao seu jeito, Lula deu prosseguimento a tal ajuste, mas incluindo boas doses de sensibilidade social e, para usar um termo proposto por André Singer, perfazendo um ensaio de desenvolvimentismo.
Acontece que o processo mencionado acima também faliu, e a tentativa de mantê-lo em ação tendo como suporte um governo ultraconservador resulta em uma combinação perversa de grandes proporções, como podemos observar a cada dia no Brasil. Ter chegado a este ponto tem causas múltiplas, e entre elas está, como mais de uma vez destacou Chantal Mouffe, aquela guinada dos partidos socialdemocratas na direção do consenso de que haveria apenas uma única via possível.
Nas eleições de 1989, Ricardo Kotscho era o assessor de imprensa da candidatura de Lula, que começou com míseros 3% de intenções de voto, se bem me lembro. Na minha memória está uma noite de meio de semana em que o comício do líder de esquerda reuniu uns quantos militantes nas escadarias da Catedral Metropolitana de Florianópolis. E só. Kotscho contou uma vez, que ao chegar ao comitê nacional de campanha, uma casa de três dormitórios alugada na Vila Mariana, em São Paulo, deparou-se com uma esquálida sala de imprensa, composta por mesa, cadeira e máquina de escrever. Para quem deixara o Jornal do Brasil, um dos grandes da época, o contraste era notável.
Como todos sabemos, de lá para cá as coisas mudaram muito. A corrida eleitoral de 2002 talvez tenha sido o ponto de virada, quando Lula candidatou-se formando chapa com um grande empresário e propondo garantias ao grande capital. A campanha, coordenada pelo experiente publicitário Duda Mendonça, foi exitosa, cunhando sobre si a esperança de tempos melhores via conciliação, por cima de interesses de classe. Apesar de tudo (que não foi pouco), e do esgotamento do modelo (que não foi identificado a tempo), houve pontos exitosos e avanços importantes perpetrados pelo desenvolvimentismo petista.
Há poucos dias, Kotscho escreveu em seu blog que o PT chegava aos quarenta anos (note-se: quando da disputa entre Lula e Collor, o partido tinha apenas nove anos de existência), “velho, sem votos e sem rumo”. Logo em seguida, dirigentes petistas dele discordaram, lembrando a representatividade parlamentar da agremiação e sugerindo que, para avaliações mais concretas, se esperasse os resultados das urnas. Eis, então, o problema: um partido socialdemocrata que se reduziu, em grande parte, à corrida eleitoral. Se também nela o PT deve fracassar – a exemplo do pífio desempenho que vem tendo em São Paulo, de ver um tecnocrata disparar nas intenções de voto em Belo Horizonte e de suportar que Eduardo Paes lidere no Rio de Janeiro –, é porque, de fato, ele está “velho [apesar da pouca idade], sem votos e sem rumo”.
A política reduzida à disputa eleitoral é mostra de que algo falhou. Falta-nos educação política, aquela que forma para a esfera pública. Não é ressuscitando o estalinismo (como se vê aqui e ali), tampouco com repulsa ao socialismo (palavra que muitos têm medo de pronunciar) que isso se resolve. Experiência social, pensamento, bom combate: precisamos de democracia sem adjetivos, de esfera política que possa ser chamada como tal.
Ilha de Santa Catarina, novembro de 2020.
Imagem de destaque: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil