Hércules Tolêdo Corrêa
57 anos. Desses, 54 anos dentro de escolas, dos mais diferentes tipos e níveis. Níveis bem diferentes; tipos, nem tanto; na formação, 80% pública; na atuação, uma distribuição mais equânime, entre o público e o privado. 57 anos. Desses, mais de 30 dedicados a ensinar. Ensinar e aprender, diuturnamente. 57 anos. Professor Associado III de uma universidade pública do sistema federal. Ano que vem, julho de 2023, progressão para Associado IV e com perspectiva de aposentadoria por tempo de serviço e idade em setembro de 2024. Pós-reforma da Previdência, para o meu caso uma mudança de regras em momentos finais de uma partida. Se eu permanecer na ativa por mais um ano, tenho chance de prestar concurso para Professor Titular e me aposentar no topo da carreira. Pouco acréscimo nos vencimentos, mas o prestígio de me aposentar no mais alto nível da pirâmide acadêmica.
Penso nas professoras Magda Soares e Ângela Vaz Leão. A primeira, próxima dos 90 anos. Aposentada e emérita da UFMG, mas ainda trabalhando e produzindo muito. Nos últimos dois anos, tempo de pandemia de Covid-19 e ensino remoto, palestras on-line a todo momento e para várias instituições Brasil afora. A segunda, que foi professora da primeira no antigo Colégio de Aplicação da UFMG e a fez mudar os rumos de sua própria história acadêmica, prestes a fazer 100 anos e ainda se reunindo com seu grupo de estudos sobre as Cantigas de Santa Maria. Grandes inspirações. Grandes nomes da educação mineira, brasileira.
Começo esse memorial de trás pra frente. Falar de hoje para começar a lembrar de ontem, de anteontem, e dos primeiros anos escolares, no Jardim da Infância da pequena Carmo da Mata, no Campo das Vertentes das Minas Gerais. Se muitas crianças não gostavam de ir à escola àquela época – e hoje talvez muitas também não gostem, comigo foi bem diferente. Contava minha mãe que eu chorava, pedindo para ir à escola, já aos três anos de idade. E assim foi. Ingressei no Jardim da Infância Olinto Diniz com 3 anos de idade.
Duas auxiliares buscavam as crianças nas suas casas. Dona Nina pegava as crianças que moravam na parte de cima da cidade, Dona Nenê buscava os pequenos moradores da parte de baixo, como eu. Dona Diva Moreira era a professora. Meu diploma do Jardim da Infância está emoldurado e pendurado na parede do meu quarto: meu primeiro e, quiçá, mais importante diploma, já que foi a partir dele que vieram os outros, tantos outros, diplomas e certificados, atestados de que frequentei e frequento até hoje os bancos escolares.
No primeiro dia de escola, Dona Diva me perguntou se eu sabia recitar versinhos. Provavelmente, procurando se aproximar da linguagem infantil, trocou o “recitar versinhos” por “falar versinhos”, o que eu prontamente respondi que sim! Dona Diva penteou os meus cabelos, me colocou em cima da mesa dela e pediu para que eu recitasse para a turma. Ao que eu simplesmente abri a boca e disse: Versinho! Se foi uma decepção para ela e para os colegas, que esperavam um pequeno recital, com um poema falando da natureza ou dos benefícios da escola, isso foi motivo de muito riso por parte do meu pai, que repetia sempre essa história para os amigos e poucos convidados e parentes que frequentavam nossa modesta casa. Isso ajudou bastante para que eu não me esquecesse dessa história, já registrada em outros textos de memória que publiquei alhures.
Sempre gostei de memórias e não foi por acaso que escolhi estudar livros de autoficção e de memórias em vários momentos de minha trajetória profissional, como na tese de doutorado e em pesquisas posteriores, mas isso já é coisa da maturidade e, por enquanto, busco falar do início de tudo.
No Jardim da Infância, mais brincávamos que aprendíamos. Aprendíamos? Quer dizer, mais brincávamos que aprendíamos aquelas coisas que são “importantes” na escola, como “ler, escrever e fazer conta de cabeça”. Eram muitas brincadeiras, com coleguinhas com quem cresci, aniversariei, estudei, me desentendi, reentendi, perdi de vista, reencontrei e mais um tanto de verbo no passado. Fantasiávamo-nos de índios – não se falava ainda indígenas, como hoje, usando tiras de folhas de bananeira presas aos coses das calças e com pinturas feitas sabe-se lá com quê (carvão? giz? batom?) na cara. Brincávamos de pique, queimada, rouba-bandeira, pote, gata-parida, roda e até de bangue-bangue na hora do recreio. Levava pão com ovo, biscoito frito e Q-suco na merendeira e cantil de plástico encardidos para o Jardim da Infância. Escrevíamos pouco, muito pouco. Não fomos alfabetizados nesse tempo, apenas aprendemos a desenhar nossos nomes. Creio que a Dona Diva lia histórias para nós. Não me lembro. Mas quero acreditar que essa prática acontecia e que veio daí, em parte, o meu gosto pelas narrativas. Digo em parte porque o gosto pelas narrativas adveio também das histórias contadas por meu pai e minha mãe na hora de dormir. Da parte da minha mãe, lembro-me da história do menino rico e do menino pobre. O menino rico não fazia nada, não quis estudar, porque não precisava de mais nada na vida, a riqueza da família já bastava, enquanto o menino pobre ia para a escola todos os dias. Os anos se passaram, os meninos não mais se viram, até que um dia o menino pobre, já velho, reencontra o menino que era rico, e que na maturidade nada mais tinha, porque não havia aprendido como fazer render o seu dinheiro. Acho que aprendi essa lição direitinho. Nunca fiquei rico, mas desde que comecei a trabalhar, com os modestos salários de professor, sempre tive meu dinheirinho para investir na compra de livros, para comprar ingressos para teatros, shows e cinemas e para correr o mundo, conhecendo novos lugares e tendo novas experiências. Ver a Mona Lisa, do Da Vinci; as Meninas, do Velázquez; a torre Eiffel, o Coliseu, a Notre Dame, e tantos outros lugares que a leitura havia me mostrado. Essas são experiências que não podem estar fora das memórias de um menino que nasceu numa pequena cidade do interior das Minas Gerais, filho de uma dona de casa e de um caminhoneiro que tiveram pouca oportunidade de estudos.
E depois dessa história que relatei acima, vieram tantas outras, dos livros, dos filmes, dos quadros, mas aí fica para outros textos, outras narrativas, outras memórias.
Sobre o autor
Hércules Tolêdo Corrêa é Doutor em Educação, na área Educação e Linguagem, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Fez estágio de Pós-Doutoramento na Universidade do Minho, em Braga/Portugal. É professor adjunto do Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto, na área de Letramento, Alfabetização e Novas Tecnologias para a Formação do Professor.
Imagem de destaque: Galeria de imagens