Das formas eficazes de dominação: lições de preconceito para crianças e jovens (II)

Alexandre Fernandez Vaz

Na complexa e dinâmica operação de reconhecer a si mesmo, o ser humano se vê e é visto pelo outro, encontrando aí um equilíbrio muitas vezes precário. Desse processo faz parte saber, ao menos momentaneamente, o que, por contingências diversas, não somos. Uma das experiências mais radicais desse movimento é ser estrangeiro, condição delimitada pela exclusão: importa, antes de olhar alguém na singularidade de suas origens, notar que se está diante de um não-nacional. Viver fora de sua terra, imerso em cultura, sociedade, clima e tantas outras determinações e acasos da história que não são aqueles para os quais se foi educado, é com frequência muito difícil.
Por mais que o imigrante, asilado político ou refugiado possa ser agradecido ao país de acolhimento (e muitos, corretamente, não deixam de lembrar quem os recebeu em momentos de dificuldade), a adaptação – a própria palavra já leva consigo algo de mal-estar – pode ser um desafio constante. Talvez a marca mais evidente desse esforço, que se combina com perene frustração, seja a língua falada no destino. Muito mais que o conjunto de signos que a gramática comporta, ela é verdadeira manancial por meio do qual o sujeito conhece e ajuda a criar o mundo em que vive. Por isso é tão difícil emigrar como adulto e acontece muito de a segunda geração da família ser aquela que, no novo território, vive com mais desembaraço. Quando a emigração se dá por motivos de miséria, guerra, perseguição, catástrofe climática ou outras situações limítrofes, a pressa é grande e as condições são péssimas. Deixar tudo para trás – casa, comida, vínculos, recordações, objetos, formação, etc. – de uma hora para a outra é terrível. Em meio a tudo isso, um estrangeiro quase nunca deixa de sê-lo, e, quando isso (quase) acontece, o custo é altíssimo.
A alemã Hannah Arendt, uma das inteligências mais proeminentes do século XX, mesmo após décadas nos Estados Unidos da América, onde chegou como refugiada, ainda dava seus tropeços com o inglês. Seu compatriota Theodor W. Adorno, por sua vez, ao ser perguntado sobre os motivos de ter regressado para viver na Alemanha, mesmo após década e meia de exílio provocado pela perseguição nacional-socialista em seu país natal, respondeu que precisava reencontrar a língua experienciada na infância.
Ser estrangeiro é estar sob a constante ameaça que se materializa contra quem é “de fora”, e isso se intensifica quando outros vetores, como classe e etnia, se cruzam. Há poucas semanas, o jogador de futebol Luighi, da Sociedade Esportiva Palmeiras, foi vítima de injúria racial durante uma partida realizada em Assunción, capital do Paraguai. O ato causou revolta no atleta e em quem não permaneceu indiferente a ele, como destacou Alexandra Lima da Silva, neste mesmo espaço do Pensar. Coube à vítima, ademais, chamar a atenção para a gravidade do que ocorrera, sobrecarregando-a ainda mais com algo que aos outros caberia fazer.
Sem deixar de condenar as agressões sofridas pelo palmeirense – a que se juntam outras tantas, cujas vítimas são principalmente brasileiros negros atuando no exterior –, Ángel Romero, paraguaio e atleta profissional de futebol, destacou o quanto o problema se enraíza também no Brasil:


“Eu vivo isso diariamente, discriminação, preconceitos, todos os tipos de insulto contra meu país, minha nacionalidade. Uma vez comentei isso numa entrevista coletiva. É algo diário. Eu tenho muito orgulho de onde venho. Se me chamam de índio, eu tenho orgulho de ser paraguaio, ser índio, ter essa raça Guarani. Creio que passa por esse motivo. Sempre que me insultam, eu me sinto lisonjeado porque é de onde venho, sou paraguaio, sou dessa raça, não chega a ser um insulto para mim. […] Como disse, diariamente aqui se vê muito racismo. Tudo isso se complica quando eles saem pra fora. Obviamente, isso não é bom, é crime, mas eles têm que internamente arrumar isso e depois ver o que acontece fora – completou.”


“Esse perfume é original ou é do Paraguai”? Quantas vezes semelhante pergunta foi feita entre nós, aludindo a produtos adquiridos no país vizinho, associado a falsificações e marcado historicamente por uma guerra que o dizimou e tornou o Brasil líder na geopolítica do Mercosul? Sim, aqui o preconceito dá conteúdo e contornos à história nacional, e um das vítimas privilegiadas dos locais é o estrangeiro, em especial quando se trata de alguém de nação que, na ordem de poder mundial, economicamente é ainda mais periférica que a nossa. Mas não esqueçamos que é de descendentes diretos de povos originários que estamos falando, sistemáticas vítimas de crimes que visam seu apagamento simbólico e destruição material. Estamos, aliás, falando de nós mesmos.
Apesar de tudo isso, não deixa de espantar o que aconteceu com Ngane Mbaye, cidadão senegalês na diáspora, morto na semana passada por um disparo policial depois de uma altercação durante repressão a ambulantes na região do comércio popular em São Paulo. A morte do comerciante – pouco me importa se um imigrante em clara situação de vulnerabilidade vende legalmente ou não produtos baratos na rua da maior cidade brasileira – causou comoção em seu país. Supõe-se que haverá investigação sobre a ocorrência toda, e estou muito curioso para saber se o princípio de uso progressivo da força foi de fato empregado. A considerar o vídeo disponibilizado pelo Universo Online, parece que não. O Estado que deveria acolher, reprime e mata. Sim, devem ser bem-vindos todos os que precisam vir, que se danem as fronteiras. Vida longa à afirmação iluminista da universalidade de direitos.

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