Contra a cultura fascista
Alexandre Fernandez Vaz
Alguns anos depois do fim do período de terror perpetrado pelo nacional-socialismo na Alemanha e no mundo todo, Theodor W. Adorno chamou a atenção para um problema que, infelizmente, não se dissipou. O filósofo e crítico social se referia à presença do fascismo na democracia, criticando a tolerância, em nome da liberdade, em relação a ideias cujo conteúdo procura suprimir a própria liberdade. Afinal, ser livre não significa poder defender qualquer ideia, mas gerar e manter as condições para que se possa viver livremente no cultivo de encontros e diferenças.
Embora a advertência de Adorno já se encaminhe para os 70 anos – foi feita em uma conferência em 1959 –, ela anda mais atual do que nunca. Não que a história desde então tenha sido linear, muito pelo contrário, ela teve curvas e solavancos a não mais poder. Ao mesmo tempo, a própria experiência da temporalidade mudou, com tudo mais acelerado e efêmero, deixando-nos sem fôlego e com demandas, mesmo que fantasiosas, incessantes e infinitas. Mas o fascismo ficou por aí, às vezes mais latente, outras mais revelado, encontrando lugar e tempo para emergir em cada pequena ou grande trincada da democracia.
Na verdade, não só a democracia é frágil (cada vez que escuto que “as instituições estão funcionando normalmente” sinto um arrepio), mas se apresenta até mesmo como excepcional no curso da história moderna e contemporânea. O autoritarismo em suas variantes, entre elas a ditadura e o totalitarismo, sempre foi muito mais presente do que gostamos de admitir. Tal situação está tão entranhada na cultura, que não surpreende ouvir alguém dizer que “de vez em quando um pouco de ditadura faz bem”, ou então observar a massiva votação em um candidato a presidente (vitorioso em uma ocasião e quase na seguinte) que desde sempre foi antidemocrático. Isso só sobrevive porque o processo de sedimentação do autoritarismo é lento, gradual e seguro, se posso aqui tomar emprestada a afirmação de generais golpistas no poder, há cinco décadas, que se referiam ao processo de abertura política.
Sem a produção, a perenidade e a amplitude de uma cultura autoritária, o fascismo teria muito mais dificuldades em se consolidar. É esse processo que permite, por exemplo, o que recentemente aconteceu na Alemanha, onde o extremismo de direita volta a avançar a passos largos. Há poucas semanas, uma confeitaria de Tübingen, pacata cidade do sul do país, famosa por sua universidade e por ter abrigado durante muitos anos o grande filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, resolveu desenterrar antigos moldes para a confecção de coelhinhos da páscoa, com o intuito de relembrar aos mais antigos os anos de sua infância. Nada demais, não fosse o fato de que os doces tinham forma de coelhos pilotando tanques e manuseando canhões. Não era uma meninice qualquer a ser relembrada, mas aquela vivida sob os auspícios do nacional-socialismo. A suposta indiferença em relação ao significado do formato só reforça a normalização do que não pode ser admitido.
O Brasil, como de praxe, não fica para trás. No começo deste abril, leu-se na grande imprensa sobre a existência de um “Hitler da Bahia”, homem de 20 anos, militar do Exército e lutador de jiu-jitsu, que liderava um grupo de 600 pessoas em uma rede social destinado a cometer crimes diversos. Com ele, foram também apreendidos jovens com menos de 18 anos. A Panela Country, como era chamada a comunidade do Telegram, foi, aliás, fundada por dois adolescentes. O líder, cujo nome civil é Luis Alexandre de Oliveira Lessa, foi denunciado por “pedofilia, violência psicológica contra mulher, cyberbullying (intimidação sistemática virtual), perseguição, incitação ao crime, divulgação de pornografia, invasão de dispositivo de uso da polícia e divulgação de informações sigilosas”. As formas de subjetivação contemporânea, muitas delas mediadas por esse órgão corporal irrenunciável que é o aparelho celular, fortalecem na juventude uma cultura masculinista baseada no ódio e na frustração, levando a uma espécie de gozo tão podre quanto ameaçador.
“Quando um nazista senta à mesa com dez pessoas e ninguém se levanta, então são onze os nazistas que a compõem” (Wenn ein Nazi mit 10 Leuten an einem Tisch sitzt und niemand aufsteht, dann sind elf Nazis am Tisch), diz um ditado alemão. A verdade é cada vez mais há extremistas de direita sentando-se à mesa, como se nada de errado ou espantoso houvesse nesse ato. Bem, o inusual não é exatamente que eles tentem se juntar a outros, mas que não nos rebelemos, enfaticamente, contra tal normalização. Precisamos disputar com mais ímpeto e disposição a cultura do nosso tempo.