Contemporaneidade e testemunho do tempo histórico: Marcelo Rubens Paiva
Alexandre Fernandez Vaz
Quem foi jovem nos anos 1980 e frequentou ambientes em que posições críticas circulavam com alguma desenvoltura, notou a presença, na agenda opositora à ditadura, de um livro emblemático. Era Feliz ano velho (1982), o primeiro de Marcelo Rubens Paiva, autor de romances, letras de música, roteiros de cinema e séries, crônicas jornalísticas e peças de teatro, além de apresentador de rádio e instrumentista. A obra que abriu a trilogia autobiográfica que passaria por Ainda estou aqui (2015) e se completaria neste 2025 com O novo agora sintetiza parte das grandes questões que nos inquietavam naqueles tempos em que os militares negociavam a saída do poder e a juventude tentava aprender o que era democracia.
Feliz ano velho foi publicado por uma casa editorial que pautava parte do debate mais sofisticado, a Brasiliense, de Caio Graco Prado. Ela trazia a público muito do que o ambiente de esquerda lia, de material de Humanidades à poesia experimental (a primeira vez que li Ana C., Chacal e Paulo Leminski foi em edições da época). Ademais, companhávamos com interesse os pequenos volumes que compunham as coleções Tudo é história, Encanto radical e Primeiros Passos, compostas por textos introdutórios e não superficiais sobre todo tipo de tema. A Primeiros Passos atribuía para cada livro o título de O que é, para ser completado com o assunto tratado (política, democracia, socialismo, luta de classes, arte, indústria cultural, educação física, pedagogia, psicanálise, corpo, etc.). Entre tantos, os que abordam ideologia (Marilena Chauí), poder (Gérard Lebrun) e corpo(latria) (Wanderley Codo e Wilson Senne) foram os que à época me calaram fundo. Mas havia mais naquele impulso ao pensamento, como a publicação dos três volumes das obras escolhidas de Walter Benjamin, responsáveis pela ampliação decisiva do interesse por esse autor e seus tópicos no Brasil.
Foi Caio Graco quem sugeriu a Marcelo que escrevesse sobre a experiência de ser um jovem adulto que havia pouco sofrera um acidente cujo resultado foi deixá-lo paraplégico, ele que já era vítima de outra situação traumática, a de ser filho de um desaparecido político detido, torturado e morto pelas forças repressivas da ditadura. O livro é um relato do intervalo entre um episódio e outro, sobretudo do período de juventude e vida universitária, boêmia e artística, dos primeiros amores e dissabores. Mas, o mais relevante vem depois – ou, ao mesmo tempo, já que a narrativa não é linear e tem lá suas elipses –, o primeiro ano de sua recuperação do acidente e, de certa forma, de si mesmo, em um mundo hostil às pessoas com deficiência. O ritmo um tanto beatnik do texto combina com a linguagem despojada, gírias e palavrões em profusão, além de um masculinismo com o qual hoje não estamos de acordo. O autor não estava sozinho e seu trabalho encontrava eco na literatura, por exemplo, de Reinaldo Moraes, que no ano anterior publicara o célebre Tanto faz.
Quando Feliz ano velho foi publicado, eu estava no segundo grau (que hoje se chama ensino médio), mas frequentava o campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para praticar atletismo. Convivendo com gente da graduação, familiarizando-me com o ambiente de oposição extraparlamentar e cultivo da contracultura, aprendi que o Diretório Central dos Estudantes (DCE) chamava-se, como até hoje acontece, Luís Travassos. Ele foi importante militante contra a ditadura, exilado durante dez anos, tendo regressado ao Brasil depois da promulgação da lei da anistia, em 1979. Pois bem, o homenageado, que morrera em acidente automobilístico em fevereiro de 1982, é o autor do impactante prefácio do livro, originalmente uma carta endereçada a Marcelo.
De lá para cá, as edições se multiplicaram, inclusive uma especial nos seus 40 anos, com prefácio de Maria Ribeiro, chegando o enredo também ao cinema, ao teatro, a outros países e idiomas. Foi sucedido por uma sólida carreira literária do autor, que muito se empenhou na luta pela democracia, o não apagamento histórico, os direitos de pessoas com deficiência. A narrativa de Feliz ano velho, que tanto disse ao adolescente que eu era, não tinha a precisão que depois Marcelo alcançaria, mas isso não lhe quita a força expressiva e mobilizadora dos jovens de então. Do fundo de duas tragédias, era bonito o convite daqueles anos em que havia a esperança da redemocratização: leiam, vivam, sonhem e continuem. Valeu a leitura, vale a releitura. É bom ser contemporâneo de Marcelo Rubens Paiva.