A revolução dos bichos escrotos

Carlos André Martins Lopes

A canção “Bichos escrotos”, da banda Titãs, foi lançada em 1986. A música é marcada pela irreverência e pela ironia, e faz um pedido ou exprimia uma ordem:

Bichos, saiam dos lixos
Baratas me deixem ver suas patas
Ratos entrem nos sapatos
Do cidadão civilizado

A canção contém um palavrão, razão pela qual foi censurada na época. Predomina a forma imperativa do uso dos verbos, conforme pudemos ver nos versos expostos acima. Faremos uma leitura “livre” da letra dessa música, não desconsiderando, porém, outros sentidos possíveis para a obra.

Ratos, baratas e pulgas são os bichos escrotos que povoam a canção. São animais que portam bactérias, promotores de doenças que podem ser fatais. No caso das pulgas, seres que são parasitas, que obtém alimento sob a condição de prejudicar outro ser. Ratos e baratas são facilmente perceptíveis a olhos nus, mas também vivem ocultos, nas sombras, se revelando apenas em ocasiões oportunas. Mas podem também agir em plena luz do dia, bastando apenas que haja uma tolerância face à sua presença.

As características desses bichos podem ser assimiladas às de outros seres que, protegidos pelas sombras, agiram durante todo o período da ditadura militar. Eles atuaram como matadores, torturadores e terroristas, recorrendo também a práticas de atentados à bomba contra opositores. Em outras versões, agiram como caluniadores, difamadores, revisionistas, negacionistas, inversores da verdade histórica. Em plena década de oitenta, mesmo após o fim da ditadura, a canção parece reconhecer que esses bichos escrotos ainda existiam. Existiam e estavam nas sombras, esperando a oportunidade de vir à plena luz e trazer o ambiente que lhe é propício. E a canção parece mesmo pedir que eles se mostrem, daí a forma imperativa que predomina na letra da canção: “Bichos, saiam dos lixos”.

Pois bem, os bichos escrotos saíram dos lixos/esgotos/monturos. Trouxeram com eles o ar imundo do ambiente que lhe é característico, e existem em grande quantidade; fizeram a rebelião dos escrotos, conquistaram cidadania.

Pode-se dizer que os bichos escrotos estão muito bem representados na figura de um militar, que ganhou notoriedade pública por tentar explodir quartéis para fins de pressão por aumento do próprio salário. Tornou-se deputado em 1991, sendo reeleito em todos os sucessivos pleitos disputados. Enquanto membro do legislativo, nunca propôs qualquer projeto que tivesse relevância social, o que implica dizer que, por todo esse período, recebeu altos salários sem, contudo, prestar qualquer serviço à população. Utilizando-se do prestígio conquistado, introduziu filhos e mulheres – esposa e ex-esposas – no mundo da política, gente igualmente improdutiva, onerando ainda mais os cofres públicos.

Esses bichos atuaram por três décadas nos esgotos da política. Entretanto, a partir de 2013, foi se gestando um ambiente favorável à existência pública de certas pragas. Gradativamente, os valores, conceitos e ideias foram sendo subvertidos. O bem passava a ser tomado como o mal; o asseado pelo sujo. Logo a terra começava a ficar plana, a vacina deixava de prevenir e de curar, sendo transformada, inclusive, em causa de doenças. O combate à fome e à pobreza e o respeito e a tolerância passaram a figurar como coisas de marginais. As bibliotecas são transformadas em locais perigosos, ambientes dos temidos “kits gays”. A ignorância vai ganhando cidadania e respeito e o saber científico perdendo estatura. Ditadores, torturadores e assassinos são transformados em heróis. O ódio, o preconceito, o racismo, a homofobia e o desprezo por valores civilizacionais passaram a ser os padrões tidos como legítimos. Os discursos de ódio logo dividiram o “Brasil em mil Brasis, criando-se as condições para melhor assaltá -lo de ponta a ponta”, conforme cantou Zé Ramalho.

Em 2016, todas as condições estavam dadas para que um verme, em meio a um infame golpe de Estado, exaltasse, com os microfones abertos para o mundo, a figura monstruosa de um torturador. Recentemente, outro desses animais imundos, eleito vice-presidente da república, seguro de que os valores civilizacionais, hoje, não passam de moeda sem valor, apresentou a mesma figura nefasta, celebrada em 2016 por ter torturado uma jovem mulher, como “um defensor dos Direitos Humanos”.

Se na década de 1980 uma música era censurada por conta de um verso que continha um palavrão, a partir de 2013 um bicho escroto ganhava notoriedade por, entre outras coisas, mostrar-se particularmente propenso à pronúncia de palavras obscenas. Um dos palavrões preferidos, inclusive, é o que motivou a censura da referida canção no ano de 1986. Já na condição de presidente da república, em famosa reunião ministerial, realizada no dia 22 de abril do corrente ano, o dito bicho escroto liderou o ranking da baixaria, tendo pronunciado 30 vezes, palavras de baixo calão. A frase “Acabou, porra”, falada, em geral, em coletivas, tornou-se uma das marcas desse ser que constitui-se como um dos piores exemplares da espécie humana. Tal é o apreço do chefe do executivo nacional pela vulgaridade que, parafraseando mais uma vez o brilhante Zé Ramalho, podemos dizer que a presidência “perdeu a identidade”, “sepultou o idioma português”, que só sabe falar pornofonês e que aderiu à global vulgaridade.

“Aqui, na face da terra, só bicho escroto é o que vai ter”, diz um dos versos da canção. Parece que é nesse projeto que está debruçado o incivilizado governo brasileiro. Em meio ao caos, proporcionado por uma pandemia, um dos membros do quadro ministerial sugere fazer um uso particular da desordem provocada pelo ambiente pandêmico. Enquanto todos estão ocupados falando da pandemia, afirma o ministro, aproveitamos o momento para fazer passar a boiada. Não se sabe bem o que significa essa expressão, contudo, pouco tempo depois a Amazônia e o Pantanal ardiam em chamas que varriam da face da terra inumeráveis formas de vida. Incorremos aqui na tentação de citar mais alguns versos, proféticos, na nossa visão, da música dos Titãs. São eles: “Oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo, vão se Foder”. Não há zebras no Pantanal e nem na Amazônia, felizmente. Há, contudo, onças, jacarés e uma infinidade de outros animais cujos restos mortais se misturam à terra completamente carbonizada.


Imagem de destaque: Joanbanjo (editado).

 

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