Bonecas humanizadas, Pessoas objetificadas

Gisele Carreirão Gonçalves

Alexandre Fernandez Vaz

Diariamente somos bombardeados pelas notícias mais inusitadas, que revelam às vezes um conteúdo apenas surpreendente, outras dão azo ao sentimento de absurdo. Nos últimos dias, o bebê reborn, boneca hiper realista que simula um recém-nascido humano, tem aparecido nos noticiários televisivos, jornais, redes sociais, e vem sendo tematizado até no parlamento. A febre por esses brinquedos chegou ao ponto de adultos os confundirem com filhas ou filhos, com extravagâncias tais como levá-los a consultas pediátricas. 

Compradas geralmente por casais ou mulheres, os reborns podem custar, segundo se lê na imprensa, R$ 8500,00. O desvario, que parece não ter limites, recebeu respostas humoradas e advertências, mas também foi levado a sério. Um padre declarou que não realiza batizados dos hipotéticos bebês, arrematando com a orientação para que psicólogos e psiquiatras sejam consultados, num nítido reconhecimento de que o adulto, ao estabelecer laços parentais com brinquedos, demonstra a perda de sua sanidade. A prefeitura de Curitiba, por usa vez, alertou que entre os destinatários dos assentos preferenciais no transporte coletivo não estariam as pessoas acompanhadas de um bebê reborn. Incrementando a trama que tende ao surrealismo, a disputa da guarda de uma dessas bonecas foi cogitada após a separação de um casal em Goiânia. A advogada, que recusou o trabalho, visto a curiosa situação entre pais que disputam uma filha de brinquedo, foi acusada pela proprietária do arremedo de bebê de “intolerância materna”.

As histórias têm tomado uma proporção tão assustadora, que o legislativo – de vereadores a deputados estaduais e federais, com os mais variados sotaques –  pronunciou-se, propondo multas às pessoas que usarem as bonecas, como se bebês reais fossem, para conseguir vantagens, entre elas, atendimento preferencial em emergências médicas. Opondo-se a qualquer tipo de justificativa e até mesmo à cobrança de taxas indenizatórias, o prefeito de um município do oeste catarinense informou que quem fizer uso dessas bonecas para obter privilégios será encaminhado à internação psiquiátrica compulsória – situação que, por si só, se mostra ainda mais absurda. Ao mesmo tempo, vereadores do Rio de Janeiro propõem um projeto de lei mais condescendente, advogando a criação do “Dia da Cegonha”, homenageando as artesãs das bonecas com essa modelagem. 

O assunto cresce sem pausa. Terapeutas defendem que tais brinquedos de adultos podem servir de suporte emocional a pessoas que passaram por traumas; há quem diga da possível relação entre a compra desses objetos e a tentativa de suprir carências afetivas. Ademais, para especialistas na área da saúde mental, a sugestão de que mulheres estão mal emocionalmente porque possuem essas bonecas, revisita  um tensionamento a partir do debate de gênero, indicando que as especulações e ridicularizações a que estão expostas às consumidoras destes artefatos lúdicos em nada se assemelham às manifestações endereçadas aos homens que brincam com jogos eletrônicos ou colecionam carrinhos.

Frente à insuportável incerteza tão humana, que uma gravidez ou adoção não podem superar, resta uma boneca sobre a qual se pode projetar todo tipo de fantasia, sem que ela devolva nada que não seja o já esperado. Entre o amor e a decepção, a plenitude e a desilusão, a alegria e as frustrações, sobra o fetichismo que, livre de pessoas reais – que desejam, têm faltas, são incoerentes, inconstantes, cansativas, mas que também podem amar e construir história –, traz apenas o “bônus” da confirmação de nossas expectativas imaginariamente cumpridas.

A necessidade de ter nos braços um bebê lindo, sem defeitos, com as características “sob medida”, leva ao questionamento se o carimbo do eugenismo não está camuflado nesse pacote a ser comprado. A aquisição comercial não afasta os pretensos pais – aqueles e aquelas que não conseguem encarar a imprevisibilidade do vacilante ser humano – do risco de uma adoção malsucedida? Ou seja, da possibilidade de comprometer-se com a criança com deficiência que virá à tona posteriormente, com uma doença por consequência de sua (desconhecida) herança genética, além dos intrigantes diagnósticos no campo dos transtornos mentais, ou até mesmo quando, à medida que o tempo passa, vai ela se afastando do projeto idealizado pelos adultos. Ameaças de todas as ordens são extirpadas quando os bebês ultrarrealistas são obtidos, mostrando que a conta vale a pena, é dinheiro bem investido, já que não se corre o perigo de ter um rebento com “falhas” (genéticas, comportamentais, de aprendizado, etc.). Compra-se a perfeição! 

Propomos um exercício de contrastação, observando uma criança que não vive a experiência da infância porque se vê no interior da realidade concreta que lhe confere a condição materna. Na contramão daquele universo de delírios, uma menina vive as asperezas da vida real. A jovem que engravidou do estuprador aos 13 anos não realizou o aborto, mesmo amparada legalmente. Assediada por diferentes personagens, incluindo um pai ausente e uma ONG antiaborto, não prosseguiu com a intervenção médica. Longe de ter as “responsabilidades” demandadas por um bebê reborn – mesmo porque sua situação econômica não permitiria – atualmente tem ao  lado uma criança de um ano. O enredo é de inúmeras violências denunciado pela sua mãe que pede socorro financeiro, já que os “cidadãos de bem”, contrários ao abortamento, abandonaram sua família. Além disso, revela a matriarca que a jovem passou a ter pensamentos suicidas. 

A menina pobre parece não merecer a atenção e os protocolos vindos da saúde mental. Afinal, por que ela (com 13 anos!) não pode gestar e parir o filho de seu agressor? Engole o choro, garota!, é o que aparentemente o mundo lhe diz. São terapêuticas e acolhimentos que entre si destoam, a depender da classe social em que ocorrem. Reconheçamos o lugar de privilégio de quem pode comprar um bebê reborn e seu enxoval, e o de vulnerabilidade daquela que tem dificuldades para adquirir fraldas de verdade para um bebê humano que não tem condições de cuidar. 

Não esqueçamos que o mesmo poder legislativo federal preocupado com o sofrimento psíquico de algumas brasileiras – como na proposta da deputada Rosângela Moro (União Brasil/SP), defendendo que o SUS ofereça atendimento psicológico às pessoas vinculadas emocionalmente a suas bonecas – esforçou-se em tramitar – não seguiu porque foi considerado inconstitucionalo Projeto de Lei 1904/24, de autoria de Sóstenes Cavalcante (PL/RJ). Uma tentativa escandalosa de criminalizar mulheres que praticassem o aborto, mesmo em casos de estupros (e demais previstos em lei), sobre as quais recairia a pena de encarceramento de 6 a 20 anos. Foi demonstração não só de desrespeito, irresponsabilidade e machismo, mas de negligência com a saúde – mental e física – das mulheres.

Que narrativas e iniciativas tão díspares não nos passem despercebidas. E por tudo o que foi dito aqui, sobre as discrepâncias, injustiças e desigualdades, gritemos por uma escola socialmente comprometida com classe, gênero, etnia e demais interseccionalidades que compõem o rol das opressões. Por uma educação que nos dê ferramentas para podermos nos indignar diante de atrocidades como essas. Não sejamos anestesiados e nem anestesistas de crianças, jovens e adultos em processo pedagógico. Desejamos sim uma escola formadora, capaz de ver a violência embutida na mobilização nacional sobre os usos e desusos de brinquedos caríssimos, enquanto meninas pobres são escancaradamente violentadas nesta mesma sociedade que humaniza bonecos e objetifica pessoas. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *