UM PRESENTE PARA O FUTURO!

Capa Joaquim.png

[Apresentação do livro Gênero na Educação Infantil, de Joaquim Ramos (Paco Editorial, 2017)]

Luciano Mendes de Faria Filho

“O regulamento estabelece a preferência da professora para o ensino primário – é o meio de abrir à mulher mineira uma carreira digna e proporcionar-lhe ensejo de ser útil à pátria. A mulher melhor compreende e cultiva o caráter infantil, e a professora competente é mais apta para a educação sem corrupções do coração e sem degradações do caráter. Acresce que a professora com mais facilidade sujeita-se aos reduzidos vencimentos com que o Estado pode remunerar o seu professorado”. (Manuel Tomaz de Carvalho Brito, Secretário do Interior de Minas Gerais, 1906)

Em 1906, sob o governo de João Pinheiro, o estado de Minas Gerais realizou uma importante reforma da educação mineira. Nela, estão sintetizados vários movimentos políticos e pedagógicos que vinham ocorrendo desde pelo menos a segunda metade do século XIX, dentre os quais a organização da escola primária na forma de grupos escolares, a implantação da seriação e a presença cada vez mais marcante das mulheres na sala de aula, como alunas e como professoras.

A epígrafe acima traz a síntese das razões pelas quais, segundo o Secretário do Interior de Minas Gerais, o estado dá preferência para as mulheres no magistério primário. O que torna possível a realização dessa síntese pelo secretário é a paulatina transformação do magistério em uma profissão feminina, ocorrida em quase todo o mundo ocidental e também no Brasil na segunda metade do século XIX. No entanto, é um processo que envolve transformações no conjunto da vida social e, de forma muito específica, no ambiente escolar. Do entendimento desse fenômeno, denominado genericamente como feminização do magistério, tem se ocupado um grupo significativo de investigadores da História e da Sociologia da Educação.

Muito sabemos sobre as razões pelas quais as mulheres foram para a sala de aula e lá permaneceram, como alunas e professoras. No entanto, muito pouco ainda se pesquisou sobre as razões que levaram os homens a deixarem o magistério. Aliás, essa própria expressão – homens deixarem o magistério – deveria ser questionada, uma vez que, se por um lado, é evidente que os homens, em algum momento, deixaram de entrar no magistério primário, não é evidente que aqueles que estavam no magistério o tenham abandonado. A despeito do que afirma a bibliografia da área, muitos dos homens que estavam no magistério primário no final do século XIX, pelo menos em Minas Gerais, continuaram na profissão até se aposentarem.

Sabemos, com razoável certeza, que em algum momento na segunda metade do século XIX foram sintetizadas as representações que tornaram o magistério muito pouco atrativo para os homens. E contrariamente ao que se afirma, o problema não foi fundamentalmente por razões salariais, já que não há qualquer evidência de que o salário das professoras da primeira metade do século XX tenha sido pior do que aquele recebido pelos homens, a maioria no magistério, um século antes.

Parece ter cumprido papel fundamental na feminização do magistério a produção de uma representação da profissão docente como pouco afeita à masculinidade dominante naquele momento. Não parece ser coincidência o fato de que os homens deixam de entrar no magistério justamente no momento em que este é produzido como uma profissão que requer uma sensibilidade em relação às crianças e suas peculiares necessidades de cuidado e educação. Ou seja, ao mesmo tempo em que o magistério ia se aproximando da maternagem, ia se distanciando, simbolicamente, dos afazeres do sujeito masculino, representado como insensível e violento demais para cuidar e educar crianças de acordo com os modernos preceitos pedagógicos.

De lá para cá, só se reforçou a imagem de que a presença dos homens no magistério primário não apenas era desnecessária, mas que, sobretudo, seria desaconselhável. Nessa longa trajetória de produção e atualização dessa representação, não faltaram, evidentemente, argumentos que afirmavam que os poucos homens que, a despeito dos constrangimentos socioculturais, ousaram entrar e permanecer na carreira, não eram (não são) homens de verdade. E, por isso também, devem ser afastados das crianças por não serem bons exemplos para elas.

Nessa história, ouso dizer, a questão dos baixos salários foi muito mais o argumento justificativo dos homens e para os homens, do que a maior das razões para que estes evitassem o magistério primário. Eu não conheço pesquisas, o que não quer dizer que não existam, que demonstrem que os jovens que optaram pela “profissão” de técnico de contabilidade ao longo das décadas de 1970 e 1980, por exemplo, ganhassem melhor que as suas colegas que faziam o curso de magistério e se empregaram como professoras primárias! A despeito disso, sabemos que poucos, muito poucos, foram os meninos que ousaram questionar esse “curso normal” das escolhas profissionais.

É por trazer mais elementos para que a gente entenda as representações e as práticas que fazem as profissões serem como são, ou seja, profundamente generificadas, que o livro de Joaquim Ramos é de grande importância, não apenas para os estudiosos da profissão docente, mas para todos aqueles e aquelas que se preocupam com nossas escolas e nossas crianças e com a necessária transformação de nosso mundo em direção a uma sociedade reconhecedora e promotora dos direitos de todos e de todos os direitos.

Ao focar a incômoda presença dos homens da educação infantil, a obra de Joaquim Ramos nos ajuda a desnaturalizar as representações que sustentam o evitamento dos homens pela profissão e, tão sério quanto isso, o receio das famílias e as resistências das professoras em relação à presença dos homens, como professores, junto às crianças pequenas. A partir de sua experiência pessoal como profissional da educação infantil, o autor colabora para que se entenda melhor os mecanismos e modos de atualização de representações e práticas de constrangimento e segregação no interior da escola. Mas não apenas isso.

Ao atualizar no cotidiano da educação infantil preconceitos produzidos em contextos históricos muito distintos, boa parte deles já, hoje, passados, os sujeitos que fazem a escola colaboram de forma decisiva para a reprodução de relações de gênero e, logo, de poder e saber, profundamente desiguais entre as pessoas. E isso desde as criancinhas!

 O livro de Joaquim Ramos é uma grande denúncia sobre como, no ambiente escolar, as diferenças são transformadas em desigualdades e mobilizadas como estratégias de submetimento de algumas pessoas pelas outras. Ao dar visibilidade a esses processos, o autor colabora para seu entendimento e cria algumas das condições que tornam possível a sua superação. No entanto, assim como não há nada de natural nas relações de gênero analisadas na obra, a superação dos preconceitos que povoam o universo escolar em relação às masculinidades e às feminilidades somente se dará por meio do engajamento dos sujeitos que fazem a escola, a começar pelos próprios professores e pelas próprias professoras.

Este livro é, portanto, um anúncio de algo que é necessário tanto quanto possível: a invenção de uma escola que colabore para relações igualitárias entre homens e mulheres, entre meninas e meninos, entre professores e professoras, enfim, para as relações entre as pessoas de todos os gêneros. E para isso, sabemos, os meninos e meninas pequenas e grandes que estão no ambiente escolar têm que ter assegurado o direito de serem educados por mulheres e homens, por professoras e professores, indistintamente.

Apreender e divulgar estudos como este realizado pelo professor Joaquim Ramos e, sobretudo, ter profunda empatia com suas sensibilidades e movimentos de subversão são dimensões de um investimento maior a que todos somos, hoje, convocados: o de combate às violências as mais diversas praticadas contra todos os sujeitos, notadamente as mulheres. Nesse sentido, este livro é uma denúncia das violências fundadas num entendimento profundamente estereotipado das diferenças de gênero. Tais violências não se circunscrevem à escola, é certo, mas essa instituição pode ser uma das forças mais poderosas para que construamos um mundo em que, desde criancinhas, as pessoas aprendam a reconhecer, respeitar e promover as diversidades e, com elas e a partir delas, imaginar e construir as mais belas utopias do mundo. É, fundamentalmente disso, acho, que trata o livro que temos em mãos, e esse é o melhor presente que o autor poderia nos ajudar a construir!

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *