As Esquerdas e a Base Curricular: suturar e combater!

“Que o perigo comum nos sirva pelo menos para sacudir nosso entorpecimento, e nos fazer retomar o gosto pela ação!”

(Émile Durkheim. O individualismo  e os intelectuais. 1898)

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Por Luciano Mendes de Faria Filho

O jornal  Pensar a  Educação em Pauta publicou, em sua edição 124, uma  nota de esclarecimento e manifestação de posicionamento do comitê assessor e da equipe de especialistas que atuaram na elaboração da Base Nacional Comum Curricular. Na nota, destacados(as) pesquisadores(as) do campo educacional e professores(as) da escola básica informam sobre o processo de elaboração da BNCC e expressam preocupação quanto ao encaminhamento das discussão sobre o documento  pela nova equipe do MEC.

Em que pese o nosso reconhecimento da importância do debate sobre a BNCC, nossa posição tem sido de questionamento sobre a centralidade que o debate tomou nas discussões das políticas educacionais brasileiras. De uma questão periférica, a BNCC acabou por se tornar o centro das discussões dos especialistas e da opinião pública, fazendo obscurecer a diferença entre o fundamental e o acessório na educação brasileira.

Como se sabe, o processo de elaboração e discussão da BNCC tem sido marcado por grande tensão e divisão, não apenas entre os pesquisadores da educação mas também entre os movimentos sociais e políticos os mais diversos. Entre os primeiros, há, de um lado, aqueles que defendem a necessidade e a importância da elaboração de uma Base Nacional para a  elevação da qualidade da escola pública brasileira. De outro, há aqueles que se posicionam claramente contra a necessidade de tal documento e afirmam que, na verdade, ele pode fazer retroceder importantes conquistas das últimas décadas. Entre os dois grupos, há muitas outras posições que reconhecem e, porém, relativizam a importância das posições de ambos os lados. Para entender, pelo menos em parte, essas posições, penso que o melhor trabalho é o publicado por Antônio Augusto Gomes Batista  e sua equipe em texto incluído numa Seção Especial sobre as BNCC publicada pelo jornalPensar a Educação em Pauta n. 106, de 20/11/2015.

No caso de movimentos e instituições, cabe indicar a criação de um Movimento Pela Base Nacional Comum, uma verdadeira frente que articula pessoas e instituições muito diversas, algumas das quais, inclusive, estão no MEC hoje, em defesa da importância da BNCC. Do outro lado, assim como no caso da academia, se encontra o posicionamento, não menos importante, de diversas instituições acadêmicas  e movimentos sociais contrários  a essa posição, como por exemplo a ANPEd e a Associação Brasileira de Currículo, incluído no mesmo número do jornal.

Em sua nota de esclarecimento e manifestação de posicionamento, o comitê assessor e a equipe de especialistas responsáveis pela BNCC trazem um dado muito significativo a respeito da importância que tomou o tema no último ano: a versão preliminar  do documento recebeu nada menos do que “12.226.510 contribuições, advindas de 45.098 escolas, 4.356 organizações, 210.864 professores”!!!

Pode-se, por um lado, argumentar, talvez com certa razão, que tão intensa participação esteja relacionada à baixa qualidade do documento apresentado e às inúmeras críticas que ele vem sofrendo. Por outro lado, sustentam os assessores e os especialistas, as contribuições guardam relação com o ambiente de participação e responsabilidade que se tentou imprimir na elaboração do documento.

O que os autores da nota ficam nos devendo é um posicionamento mais aberto e contundente sobre as origens e as bases de suas preocupações quanto à forma que o MEC poderá encaminhar as discussões da segunda versão do documento.  Não me parece, agora, hora de tergiversar sobre isso. Seria preciso nomear os sujeitos, os interesses e as questões políticas que estão em jogo.

Como os assessores e especialistas que assinaram a nota não nos dizem, nos resta indagar e analisar os acontecimentos recentes. A esse respeito, uma referência importante é o texto sobre um Seminário da Comissão de Educação da Câmara, realizado no último dia 31/05,  postado no Blog do Freitas em que  o autor chama a atenção para o interesse e as articulações que o  movimento Escola Sem Partido e outros movimentos conservadores demonstram em relação à BNCC. Nessa direção, é interessante observar que, segundo o blog, uma das perguntas enviadas por uma participante de seminário foi: “Porque a BNCC não deveria passar pelo Congresso? Foi feita por partidários de uma ideologia de esquerda. O CNE não nos representa.”

Há disseminada, na verdade, uma grande apreensão com os rumos que serão dados à educação brasileira pelo governo golpista e provisório do Temer e pelos especialistas que o apoiaram e/ou a ele aderiram, tal como  foi discutido também aqui no Blog do Pensar a Educação. O que está em causa não é, definitivamente, a Base, mas o conjunto das políticas educacionais. Estabelecer o que deve ou não ser ensinado na escola é um grande problema político e, logo, simbólico com o qual todos temos que nos ocupar.  No entanto, não podemos acreditar que, para as forças da reação golpista, esse é o foco central. A escola sem partido, a exemplo de outros grupos e movimentos, tem um partido! E ele se preocupa muito mais do que com o currículo da escola básica brasileira!

A proposta de desvinculação constitucional das verbas para a educação e a saúde, os projetos de cerceamento da ação dos professores, o combate ao Piso Nacional Salarial dos docentes, as ações contra as políticas de ação afirmativa e contra a pauta LGBT, ente outros, demonstram muito claramente a que vieram os golpistas, seus apoiadores e adesistas.

Nesse sentido, ao amplo campo das esquerdas brasileiras que se preocupa com educação pública de qualidade é estabelecida a exigência política e ética de suturar suas feridas advindas de desavenças internas, seja sobre a BNCC e outras de menor importância, e unir forças para o combate da ação conservadora na educação e no ataque frontal à democracia e ao Estado de Direito. Mesmo aqueles e aquelas que não se reconhecem nessa ampla tradição de esquerda, mas prezem pela coisa pública e pela escola pública de qualidade, não podem se esconder por detrás do manto da neutralidade  ou de sua especialidade e dizer que “isso nada tem a ver comigo”.  O que está em jogo, mais uma vez, é a nossa capacidade de imaginar um destino comum para todos nós e por ele combater. Inclusive para fazer com que, no futuro, tenhamos garantido o espaço público democrático para continuarmos disputando, entre nós e com os outros, os sentidos da educação.

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