A violência e a educação de nossas (in)sensibilidades

Por Luciano Mendes de Faria Filhocultura do Estupro

Tenho acompanhado, sempre com renovado interesse, a produção intelectual do meu colega da UFMG, o prof. Marcus Taborda. Tanto em seus textos no jornal Pensar a Educação Pauta, quanto naqueles divulgados em veículos acadêmicos, ele tem nos ensinado que nossa sensibilidade é historicamente produzida. Ele, no interior de uma longa tradição do pensamento crítico, nos lembra de que tanto o que experimentamos como sensações por meio dos sentidos quanto nossas apreciações estéticas ou éticas estão imersos na cultura em que vivemos e somente adquirem sentido no interior dela. A sensibilidade, como experiência humana é, pois, educada.

Pensei muito nisso nos últimos dias a propósito de uma coisa banal, que quase se perdeu no turbilhão de coisas do meu cotidiano, mas que, por algum motivo, ficou. Estava eu no avião, indo para a cidade do Porto, em Portugal, para participar de um evento de história da educação. Ligo o monitor da minha poltrona e eram várias as opções de filme. Escolho The Revenant, filme pelo qual bom moço hollywoodiano, Leonardo DiCaprio, ganhou o Oscar de melhor ator, numa edição mais uma vez polêmica da premiação, dessa vez pela falta, agora absoluta, de negros e negras concorrendo à premiação nas principais categorias.

Numa cena do filme, que era uma carnificina só, com índios e brancos se matando a torto e a direito, um corpo nu é arrastado. Na tela uma mancha impede a visão completa do corpo, certamente para evitar que as crianças que porventura tivessem acesso ao filme, no avião, vissem as “vergonhas” adultas ali expostas. Na sequência do filme acontecem várias outras cenas de grande violência: mortes a sangue frio, assassinato de um adolescente e estupro de outra, destruição de aldeias,  homem abandonado para  morrer… Todas essas cenas são mostradas sem nenhuma edição que evitasse que fossem vistas em toda a sua crueza.

Fiquei pensando, pois, em nossas sociedades, em nossas culturas. O que terá acontecido, e acontece, para que possamos considerar um atentado – ao pudor!? – a exposição de um corpo nu, mas não consideramos uma agressão a violência que o mutila e destrói?

A propósito disso, lembrei-me das discussões recentes sobre a cultura do estupro no Brasil e  dos investimentos de movimentos como o da escola sem partido e de vários outros grupos reacionários que se mobilizam para que não haja, na escola, discussão sobre as relações entre homens e mulheres,  pois é disso que se fala quando se fala de relações de gênero no espaço escolar. Essa discussão não caberia aos professores, já que estes não seriam educadores, segundo as lideranças desses movimentos; não caberia aos professores educar nossas crianças para uma maior igualdade entre meninos e meninas.  Tudo leva a crer, portanto, que não cabe à escola combater a violência contra as mulheres ou contra a população LGBTs. Trata-se, portanto, da atualização da velha máxima machista de que  em “briga entre marido e mulher não se mete a colher”!

Fico, às vezes, pensando se os seguidores desses movimentos e de suas lideranças têm noção do que estão fazendo quando dizem combater a chamada “ideologia de gênero”. Será que têm noção de que tais movimentos estão praticando uma violência contra nossas crianças e jovens? Porque conversar, na escola, sobre aquilo que nos constitui, nossas diferenças, inclusive corporais, pode ser tão mais perigoso para as crianças e os jovens do que a violência que contra estes corpos e essas diferenças se pratica?

Talvez as vergonhas que não se queira expor não sejam propriamente a do corpo nu, arrasado pela violência e arrastado pelo chão, mas outras  vergonhas nossas, de adultos, e da sociedade que estamos fazendo.  Talvez o que se queira evitar é que nossas crianças e jovens descubram cada vez mais a beleza e o prazer que reside nas diferenças dos corpos, em cada corpo, que ousem se mobilizar contra a violência que se pratica em nome disso. E, na mesma balada, talvez o que se queira evitar seja a tomada de consciência de que boa parte das nossas mazelas políticas, sociais e econômicas se funda na contínua transformação de nossas diferenças em desigualdades e na mobilização das violências as mais diversas para manter intactas tais desigualdades.

Educar para a  insensibilidade quanto às nossas diferenças é uma das formas de educar, também, para sermos indiferentes às  nossas desigualdades.

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