A Ciência e a Política – reflexões sobre os legados da ditadura.

Por Luciano Mendes de Faria Filho

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Confesso que fiquei contente com as vaias e os gritos de golpista  com os quais o Ministro de Temer, Gilberto Kassab, foi recebido na abertura da 68ª Reunião Anual da SBPC, evento que acontece, durante toda essa semana, no Campus da Universidade Federal do Sul da Bahia, em Porto Seguro.

Essa é, certamente, a reunião que acontece no momento mais delicado da vida política brasileira desde pelo menos o fim do Regime Militar. E o desafio posto à maior sociedade científica brasileira é o de unir forças contra o golpe em curso e a favor das políticas públicas.

Como se sabe, as reuniões da SBPC foram, durante o Regime Militar, um espaço importante de resistência aos desmandos do Estado autoritário e de construção de alternativas para a sociedade brasileira. No campo da política, a Sociedade foi de grande importância na proposição de debates e na construção de posições comuns a favor da democracia, do Estado de Direito e das políticas públicas.

A esse respeito lembro o texto A Ciência, da Ditadura e os Físicos, do Ildeu de Castro Moreita, incansável ativista pela democracia e pela ciência no país. No texto, ele chama a atenção para o impacto das ações da ditadura na comunidade de pesquisa brasileira, especialmente nos pesquisadores da física. Ele salienta também que “A SBF foi certamente, ao lado da SBPC, uma das sociedades científicas que se manifestou com mais intensidade contra as arbitrariedades do regime, em defesa de seus membros e em prol do estabelecimento de políticas científicas discutidas com a comunidade”.

No texto há um depoimento do geneticista Crodowaldo Pavan (1919-2009) em que ele destaca também o fato de as reuniões da SBPC terem contado com o apoio dos órgãos de Estado para a realização de suas reuniões. Dizia ele que:

O governo militar errou e muito, mas não podemos deixar de fazer uma análise fria da situação. E o maior erro que eles cometeram, a meu ver, foi estabelecer um sistema de destruir as lideranças, inclusive as próprias. Agora, os militares realmente acreditavam no desenvolvimento científico e tecnológico. Posso garantir o seguinte: todas as reuniões anuais da SBPC, com exceção de 1977, foram amparadas pelo governo federal e se realizaram às suas custas. Nessas reuniões, 90% do que se discutia era contra o governo, mas, assim mesmo, a SBPC foi a única instituição que conseguia discutir livremente naquele período. Nem a Igreja, nem os advogados, nenhuma outra instituição conseguiu fazer o que a SBPC fazia. E não é por mérito da SBPC. Foi porque os militares acreditavam em ciência e tecnologia. Havia um interesse no desenvolvimento dessa área.

Lembrei-me do texto e do depoimento por dois motivos: o primeiro é que o artigo do Ildeu Moreira faz parte do esforço de, em 2014, por ocasião 50 anos do Golpe Civil-Militar, fazer um balanço do legado da ditadura na cultura, na ciência, na educação e na política brasileiras. Em segundo lugar, porque o depoimento do Clodowaldo Pavan nos remete ao investimento militar na montagem do sistema nacional de C&T.

Observando o que se discutiu e se produziu em 2014 a respeito dos 50 anos do golpe e do legado da ditadura, é nítida a sensação de que, ao contrário de outros países como o Chile e a Argentina, não conseguimos expor totalmente as entranhas da ditadura, punir os responsáveis pelos crimes cometidos e criar condições para a superação da cultura política autoritária atualizada e reforçada por ela. Os pequenos resultados de nossa tardia Comissão da Verdade é, disso, um sintoma dos mais importantes.

Talvez seja por isso, inclusive, que agentes políticos e movimentos sociais, de Bolsonaro e seus seguidores ao movimento escola sem partido, tenham tanta desenvoltura e acolhimento no espaço público. Parecem nos perguntar: se aqueles que, lá no passado, cometerem crimes os mais atrozes, não foram punidos, por que nós teríamos que sê-lo hoje por fazer apologia da ditadura, da tortura e de práticas fascistas?

No caso da política de ciência e tecnologia apoiada pelo militares mas, de forma geral, operada pelas universidades e centros de pesquisa, o depoimento do C. Pavan deveria nos alertar para um balanço que também ainda não foi feito e que se refere a força do sistema de pesquisa e pós-graduação criado durante a ditadura na configuração das atuais políticas de ciência e tecnologia do país e, mesmo, na criação de uma cultura acadêmico-científica bastante avessa às questões políticas e ao diálogo com as demandas de nossa população.

Conforme já se comentou aqui, é bastante sintomático que, nos acontecimentos que abalaram a República brasileira nos últimos meses e que põem em risco nossa frágil democracia e as políticas públicas, boa parte dos cientistas e de suas instituições de representação somente tenham vindo se manifestar depois da extinção do MCTI. Do mesmo modo, que é não é muito animador para a democracia, a grande amabilidade com o Ministro golpista Gilberto Kassab vinha sendo tratado nas suas reuniões com as instituições científicas brasileiras. É evidente que não se espera que ele seja maltratado, mas também não se pode esquecer que ele é parte de um governo golpista, antidemocrático e que está destruindo as estruturas de Estado garantidoras das políticas públicas.

Assim como é necessário, no campo político, reconstruir e entender os caminhos que nos trouxeram até aqui para acharmos as melhores estratégias de combates aos movimentos e políticas autoritárias e antirrepublicanas que ressaltam os valores familiares e religiosos privados para a organização da vida pública, é também necessário que façamos um balanço das formas como as instituições e culturas científicas estabelecidas na ditadura configuram as políticas do presente e autorizam a não responsabilização de boa parte da comunidade científica pela democracia, pelo Estado de Direito e pelas políticas públicas que atendem à população mais pobre do país.

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